Em 7 de setembro de 1926, enquanto o país celebrava mais um aniversário da Independência, a Folha da Manhã veiculava, na seção Ribaltas e Projecções, um artigo de Monteiro Lobato. Intitulado “O beijo que São Paulo não viu”, o texto — uma peça concisa e incisiva de jornalismo opinativo — expunha, com a reconhecida acidez crítica de Lobato, as contradições morais e culturais da sociedade paulistana da época. Embora não se saiba ao certo se a escolha do feriado para sua publicação partiu do próprio autor, tudo indica que tenha sido uma decisão editorial. Quase um século depois, o artigo, até então relegado ao esquecimento, ressurge como documento revelador da tensão entre liberdade artística e censura velada no Brasil.
No artigo, Lobato reage com sarcasmo e indignação à censura imposta à exibição do filme The Sea Beast (1926), dirigido por Millard Webb e protagonizado por John Barrymore e Dolores Costello. A película — uma adaptação livre de Moby Dick, de Herman Melville e um clássico do cinema mudo — introduzia um enredo romântico inédito entre o capitão Ahab e a personagem Esther. O ápice dramático do filme era um beijo entre os protagonistas. Mas, em São Paulo, esse beijo foi suprimido. Censurado. Cortado da projeção pública, sumido como a baleia branca no horizonte do puritanismo.
A crítica de Lobato transcende a narrativa do filme. Embora descreva o enredo e reconheça o sucesso da produção — o maior da Warner Bros naquele ano —, o foco de sua indignação é a mutilação simbólica imposta pela censura. Para ele, o corte do beijo representava uma violência cultural, sintoma de uma sociedade moralmente reprimida e autoritariamente conduzida por supostos guardiões da virtude:
“Desse filme, obra prima da cinematografia contemporânea, um eunuco, sobrinho do Onam bíblico, cortou o beijo! Para essa triste criatura sem glândulas o beijo é o crime, a “imoralidade”, o “improper”.” (Monteiro Lobato, “O beijo que São Paulo não viu”, 1926)
O episódio insere-se no contexto da Primeira República (1889–1930), onde a censura às artes no Brasil operava de forma difusa, porém sistemática, mesmo antes de ser formalmente institucionalizada pelo Estado. Embora ainda inexistissem mecanismos legais específicos voltados à repressão cultural, como os que viriam a ser estabelecidos a partir do Estado Novo em 1937, já se delineava uma estrutura de controle moral sobre as manifestações artísticas. Comissões municipais e estaduais, frequentemente influenciadas por setores conservadores da elite, da Igreja Católica e da imprensa, exerciam severa vigilância sobre o conteúdo exibido nas salas de projeção — sobretudo em São Paulo, onde o rigor era particularmente acentuado. Como destacam os pesquisadores Maria Cristina Castilho Costa e Eduardo Victorio Morettin, entrevistados pelo Jornal da USP, a censura cinematográfica brasileira surgiu justamente quando o cinema começava a se consolidar como forma de comunicação de massas. Nesse contexto, atores sociais como educadores e religiosos passaram a pressionar o Estado, que inicialmente alocou a tarefa de controle ao Ministério da Educação, transferindo-a mais tarde para o Ministério da Justiça, ainda na década de 1930.
A publicação do artigo em pleno 7 de setembro pode não ter sido mera coincidência, sugerindo uma escolha simbólica. A ausência do beijo na exibição do filme acabava por representar, de maneira sutil, as limitações da liberdade artística no Brasil da época — uma independência cultural ainda marcada por restrições e controles morais.
Resgatar esse artigo hoje, quase cem anos depois, é mais do que um gesto de memória: é um ato de enfrentamento. Ainda debatemos liberdade de expressão, ainda enfrentamos censuras disfarçadas, ainda há beijos — simbólicos ou literais — que o Brasil se recusa a enxergar.
Monteiro Lobato, que muitos lembram apenas pelo Sítio do Picapau Amarelo, foi também editor, tradutor e um cronista incômodo, um desmascarador de farsas morais. O artigo publicado naquele 7 de setembro segue atual como um editorial de hoje. Por isso, vale relê-lo — não como curiosidade de arquivo, mas como advertência. Porque o país continua a negar aquilo que deveria ser mais simples e mais justo: o direito de sentir, de desejar, de existir plenamente.
O Beijo que São Paulo não viu
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