Por
favor, analise as informações abaixo e responda por conta própria.
1. Lobato foi o primeiro
escritor brasileiro a denunciar a situação degradante a que escravizados foram submetidos
e a que ex-escravizados continuavam sendo mesmo três décadas após a assinatura
da Lei Áurea. Ver os contos “Os negros” e “Negrinha”, respectivamente.
2. Lobato foi o primeiro
escritor brasileiros a colocar uma mulher negra, analfabeta e pertencente à
terceira idade como integrante do núcleo de protagonistas de uma série de
estórias (ver a atuação de Tia Nastácia nas estórias d’O Sítio do Pica-pau
Amarelo). Um dos melhores exemplos do alto nível em que colocou Tia Nastácia se
encontra no livro A reforma da natureza.
Devido a seu bom-senso, Tia Nastácia foi convidada a ir à Europa aconselhar os
estadistas mais poderosos do período da II Guerra Mundial (incluindo-se
Mussolini e Hitler) sobre como alcançar e preservar a paz.
3. Lobato foi a primeira
voz – e talvez única no início do século XX – a anunciar o que hoje é obvio,
mas que não o era há um século: “Preto também é gente.” (ver a última frase do
livro Caçadas de Pedrinho).
4. Lobato foi o único
escritor brasileiro a escrever um romance inteiro para mostrar os malefícios
que a aplicação da eugenia negativa (a eugenia darwinista) poderia gerar. Ver o
romance O choque das raças ou o
presidente negro e ver também a diferença entre eugenia darwinista e
eugenia lamarquiana (esta, considerada positiva; nela se englobam, por exemplo,
as ações de imunização artificial da população por meio de vacinação). Veja
também nota abaixo contendo as referências que Lobato faz às pessoas da etnia
negra em no referido romance.
5. Lobato foi o único a
reconhecer o valor do trabalho do museólogo Manuel Querino, negro. Lobato
chegou a publicar gratuitamente, por livre e espontânea vontade, uma nota sobre
seu livro (de Manuel Querino), na qual ressalta que, por ser negro, Querino precisou
despender muito esforço – mais do que teria que ter despendido se fosse branco
– para alcançar o elevado patamar a que chegou. Também não mediu esforços para
publicar Lima Barreto e reconhecia em Machado de Assis o melhor escritor
brasileiro.
“Manuel Querino é membro
do Instituto Histórico da Bahia e é preto, como no-lo revela o seu retrato.
Isto só lhe acrescenta valor. Ser preto é ser humilde, partir do nada,
encontrar na vida todos os óbices do preconceito social e despender para
obtenção das coisas mínimas um esforço duplo do requerido pelos que nascem
limpos de pigmentos. Honra lhe seja pela árdua tarefa levada a cabo com tanta
modéstia e discernimento. Não é nem faz obra de crítico, amontoa simplesmente
material para que os Taines maiores e menores da terra impem de sábios à custa
de esforço alheio. Subintitula o seu livro de Indicações biográficas – e reúne
tudo quanto em anos de labor conseguiu colher relativo aos escultores, pintores
e músicos baianos. Na escultura biografa 27 artistas, alguns escultores, a
maioria simples santeiros.” Monteiro Lobato, sobre Manuel Querino, em “Revista
do Brasil”, n. 16, abr. 1917.
6. Enquanto esteve preso,
por discordar do Presidente Getúlio Vargas sobre a questão da exploração do
petróleo no Brasil, Lobato alfabetizou seus companheiros de cela, a maioria
pobres e negros. Lobato também forneceu carta de recomendação a cada um que foi
libertado durante o período em que ele esteve preso e indicou pessoas de fora
da prisão a quem poderiam procurar, em seu nome, para solicitar emprego. O
próprio Lobato deixou seu endereço com os companheiros de cela. Depois que saiu
da prisão, foi procurado por um ex-colega detento, um negro que esteve preso
por matar uma pessoa. Lobato o contratou como jardineiro. Sua esposa,
Purezinha, tinha muito medo do homem devido a seu histórico; mesmo assim,
Lobato o manteve em sua casa.
Eu poderia citar mais
elementos para sua análise, mas sei que em sua cabeça martelam algumas frases
descontextualizadas de Lobato, frequentemente citadas por quem pede que seus
livros sejam novamente queimados em praça pública – exatamente o que a Igreja
Católica fez quando ele ainda estava vivo... Após a missa das manhãs de domingo,
atrás da das igrejas católicas, uma grande fogueira era acesa com os livros de
Lobato levados pelas crianças para os professores e professoras ao longo da
semana a troco de “ponto positivo” na nota. Então, vamos a elas.
1. “Tia Nastácia trepou
no mastro de São Pedro como uma macaca de carvão” – sempre citada para dar a
entender que o termo macaca de carvão é um xingamento usado por Lobato para
detratar Tia Nastácia por ela ser negra.
Primeira lição – de
português: nas orações acima (Tia Nastácia trepou no mastro de São Pedro como
uma macaca de carvão” trepa em mastros, árvores etc) não há uma comparação
entre substantivos (Tia Nastácia e macaca de carvão), mas sim entre verbos: ela
trepou/subiu no mastro de São Pedro como uma macaca trepa/sobe em tudo que há
para subir.
Segunda lição – de
biologia: macaco de carvão ou macaco carvoeiro é o nome popular do macaco
buriqui, ou muriqui (em língua tupi-guarani). O nome indígena deste tipo de
macaco significa “aquele que balança de um lado para o outro”. A fêmea é
descrita como tendo o ventre avantajado. Se imaginarmos o movimento de alguém
com abdômen avantajado subindo em um mastro, conseguiremos supor que o balanço
lateral é mais pronunciado do que o movimento feito quando um corpo esguio sobe
o mastro.
Até hoje, quando alguém
não para quieto, pula e sobe nas coisas, é chamado de macaco. Qual criança
nunca foi chamada à atenção por um “desce daí, tá parecendo macaco” ou “desce
daí, seu macaquinho”?
Então, Lobato também
comparava o ato de saltar ou subir em algo com destreza ao ato praticado por
macacos. Isso aparece em toda a obra de Lobato como um elogio à destreza da
pessoa – seja ela branca ou negra. No caso específico de Tia Nastácia, ele não
comparou seu movimento ao de um macaco genérico, mas ao do muriqui, que balança
bastante de um lado para o outro e, sendo fêmea, balança mais ainda. Para
encerrar, é preciso contar que o muriqui tem a pelagem alaranjada. Basta dar um
google para confirmar as informações acima. Por fim, é preciso lembrar que,
antes da década de 70, a maior parte da população brasileira era rural e o
muriqui era conhecido por praticamente todo brasileiro dos estados que se
estendem do nordeste ao sul, onde havia uma extensa faixa da Mata Atlântica.
Por tanto, ao estabelecer a comparação, todos os leitores sabiam que lá estava
escrito “Tia Nastácia trepou no mastro de São Pedro balançando pronunciadamente
de um lado para o outro.”. Por que Lobato usou uma metáfora – e não simplesmente
escreveu a frase anterior? Por que ele escrevia literatura – e não texto
técnico.
2. “Cheguei verde [nos
EUA]. Deveria ter vindo quando enforcavam os negros” – frase de uma carta de
Lobato a Godofredo Rangel apresentada como expressão do desejo de assistir ao
enforcamento de negros nos EUA. Trata-se, porém, de uma locução adverbial de
tempo: “Cheguei aos EUA inexperiente do que se passava aqui. Eu deveria ter
vindo no tempo em que enforcavam os negros, pois, naquela época (quando
enforcavam os negros aqui nos EUA), meu livro O choque das raças ou o presidente negro seria útil para defender
os negros aqui. Hoje, em pleno Harlen Renaissance (dê um google aqui também ou
leia meu livro: SANTANA-DEZMANN, Vanete. Entre
metafísica, distopia e mecenato. São Paulo: Os caipiras, 2021.), este meu romance
não faz sentido nos EUA.”
3. “Lobato e seu livro ‘O
presidente negrro’ eram tão racistas que nem os norte-americanos/estadunidenses
quiseram publicar esse livro”, dizem as más línguas, sedentas por fogo e
personagens saídas da distopia “Fahrenheit 451”. Não é nada disso. Acontece que
em 1926 a mecenas das artes em Nova Iorque, poderosa nos EUA e famosa no mundo
todo, era ninguém menos do que A’Lelia Walker, herdeira da fábrica de alisantes
de cabelo da Madam C. J. Walker (sim, aquela da péssima série da netflix –
recomendo o livro, escrito pela bisneta, A’Lelia Bundles). Nenhum editor dos
EUA publicaria um livro em que o alisamento de cabelo foi responsável pela
esterilização dos homens negros – todos os editores da época “comiam – ou, ao
menos, queriam “comer” – nas mãos” de
A’Lelia. Tudo isso se encontra documentado em meu livro acima referido.
4. Quanto à outra forte
acusação que induz os personagens de “Fahrenheit 451” a quererem “queimar” a
memória de Lobato e sua obra – a acusação de que Lobato desejava que houvesse
no Brasil um movimento como a KKK – infelizmente ainda não posso emitir
análise, pois ainda não tive acesso à carta em que tal desejo teria sido expresso.
De qualquer modo, informar-se sobre a origem da KKK, sobre um tal Blue Vein
Circle, sobre as divisões entre diferentes tipos de “não brancos” vigentes no
início do século XX e sobre as fakenews
publicadas pela imprensa carioca à época sobre Lobato já fornecerá importante
material para a análise da tal carta.
5. Por fim, quanto às
acusações de que Lobato era racista e sua obra também, por usarem “expressões
racistas”, sugiro incendiar junto com a memória de Lobato a memória de W. E. B.
Du Bois (vale outro google), ilustre negro e principal ativista pró direitos
civis dos negros dos EUA no início do século XX, afinal ele batizou sua
associação de National Association for the Advancement of Colored People (NAACP).
Chamar os afrodescendentes de “pessoa de cor” é racista, não é? Vamos queimar
esse racista do Du Bois também!
Nota 1: sobre a nota de Monteiro Lobato acerca de Manuel Querino
Nota sobre: Manuel Querino (1851-1923)
Escrita por: Monteiro Lobato
Publicada em: “Revista do Brasil”, n. 16, abr.
1917.
Disponível em: LOBATO, Monteiro. Críticas e
outras notas, 2009, p. 153.
Dra. Vanete Santana-Dezmann
Manuel Querino
Retrato publicado no livro Artistas
bahianos: indicações biographicas. 2. ed. melhorada e cuidadosamente
revista. Bahia: Officinas da Empreza “A Bahia”, 1911.
Retrato acessível em http://www.dicionario.belasartes.ufba.br/.../manuel.../
“Manuel Querino é
membro do Instituto Histórico da Bahia e é preto, como no-lo revela o seu
retrato. Isto só lhe acrescenta valor. Ser preto é ser humilde, partir do nada,
encontrar na vida todos os óbices do preconceito social e despender para
obtenção das coisas mínimas um esforço duplo do requerido pelos que nascem
limpos de pigmentos. Honra lhe seja pela árdua tarefa levada a cabo com tanta
modéstia e discernimento. Não é nem faz obra de crítico, amontoa simplesmente
material para que os Taines maiores e menores da terra impem de sábios à custa
de esforço alheio. Subintitula o seu livro de Indicações biográficas – e reúne
tudo quanto em anos de labor conseguiu colher relativo aos escultores, pintores
e músicos baianos. Na escultura biografa 27 artistas, alguns escultores, a
maioria simples santeiros.” Monteiro
Lobato
&&&&&&&&&&&&&&&&&
Leia também:
1) O retrato falado
do “racismo na obra infantil de Lobato” – Vanete Santana-Dezmann.
https://vanetesantanadezmann.blogspot.com/2021/01/o-retrato-falado-do-racismo-na-obra.html
2) Beloved, Amistad e
Negrinha… libelos contra o racismo – Vanete Santana-Dezmann
Nota 2: sobre a macaca de carvão
O muriqui-do-sul (nome científico: Brachyteles
arachnoides), também chamado simplesmente de mono-carvoeiro ou muriqui, é
uma espécie de primata da família Atelidae e do gênero Brachyteles endêmico da Mata Atlântica brasileira. É uma das duas
espécies existentes de muriqui, sendo a outra o muriqui-do-norte (nome científico: Brachyteles hypoxanthus).
Ocorre principalmente nos estados do Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Espirito Santo e Minas Gerais. Com quase 1,60 m
de comprimento e pesando até 15 kg, o muriqui do sul é o maior primata não-humano
das Américas. É uma espécie
considerada como "criticamente em perigo" pela IUCN[3] e "em
perigo" pelo Ministério do Meio Ambiente. Isso se deve principalmente à
alta fragmentação da Mata Atlântica e à caça ilegal, que pode levar
pequenas populações reduzidas à extinção rapidamente.
O muriqui-do-sul tem longos braços e
uma cauda preênsil, que permite a braquiação. Ao contrário do
muriqui-do-norte, sua face é negra, sem manchas esbranquiçadas, e não possui
o polegar vestigial.
Os testículos são
volumosos, consequência de um sistema de acasalamento promíscuo.
Etimologia
Muriqui vem do tupi muri'ki e
significa "gente que bamboleia, que vai e vem". A espécie é conhecida
como "povo manso da floresta", graças a seus hábitos pacíficos e de
permanência em grupo.[4][5]
Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Muriqui-do-sul
Nota 3: sobre o romance O
choque das raças ou o presidente negro
O livro O choque das raças ou o presidente negro – um romance do
ano 2228, de Monteiro Lobato, recentemente passou a ser apontado como um
romance racista. Para que cada um possa avaliar por si mesmo as referências a
pessoas da etnia negra e a Jim Roy que se encontram no livro, reproduzo-as
abaixo.
A quem quiser conhecer minha análise, indico Entre metafísica,
distopia e mecenato, publicado em 2021. O livro pode ser adquirido
diretamente comigo pelo e-mail vanetedezmann@gmail.com.
Quem sabe os excertos estimulem a leitura do livro do romance de Lobato
por completo. Sua primeira edição se encontra reproduzida em Entre
metafísica, distopia e mecenato.
Parte de minha análise também pode ser acessada em algumas palestras
disponíveis na internet: “Por que O
presidente negro não foi publicado nos Estados Unidos”; “Quem fala por Lobato
em O presidente negro?” e “Entre metafísica,
distopia emecenato”.
Para entender algo, nada melhor do que conhecer. Conhecimento é poder! O
conhecimento liberta!
Excertos 1 a 3: descrição de Jim Roy
Era Jim Roy, na realidade, um homem de imenso valor. Nascera fadado a
altos destinos, com a marca dos condutores de povos impressa em todas as
facetas da sua individualidade.
Como organizador e meneur, talvez superasse os mais famosos
organizadores surgidos entre os brancos. A história da humanidade poucos
exemplos apresentava de uma eficiência igual à sua. Consagrara-se desde muito
jovem à execução dum plano de gênio, traçado nas linhas mestras com a mais
perfeita compreensão do material humano sobre que pretendia agir.
Lobato, 2021, p. 259.
Ia realizar um ideal. O problema negro da América teria com ele no
governo a única solução justa.
Lobato, 2021, p. 316.
E Jim sonhava o maior sonho que ainda se
sonhou na América.
Lobato, 2021, p. 316.
Excerto 4
Às 9 e 45, aproximou-se da janela e espalhou o olhar pelo casario de
Washington. O panorama que viu, entretanto, foi bem diverso. Descortinou todo o
lúgubre passado da raça infeliz. Viu, muito longe, esfumado pela bruma dos
séculos, o humilde kraal africano visado pelo feroz negreiro
branco, que em frágeis brigues vinha por cima das ondas, qual espuma venenosa
do oceano. Viu o assalto, a chacina dos moradores nus, o sangue a correr, o
incêndio a engolir as palhoças. Depois, o saque, o apresamento dos homens e
mulheres válidos, a algema que lhes garroteava os pulsos, a canga que os metia
dois a dois em comboios sinistros, tocados a relho para a costa. Viu, como
goelas escuras, abrirem-se os porões dos brigues para tragar a dolorosa carne
de eito. E recordou o interminável suplício da travessia... Carga humana,
coisa, fardos de couro negro com carne vermelha por dentro. A fome, a sede, a
doença, a escuridão. Por sobre as cabeças da carga humana, um tabuado. Por cima
do tabuado, rumores de vozes. Eram os brancos. Branco queria dizer uma coisa
só: crueldade fria...
Viu depois o desembarque. Terra, árvores, sol – não mais como em África.
Nada deles, agora – nem a terra, nem as árvores, nem o sol. Caminha, caminha!
Se um tropeça, canta-lhe o látego no lombo. Se cai desfalecido, trucidam-no. A
caravana marcha, trôpega, e penetra nos algodoais...
Viu Jim viçarem luxuriosos os algodoais da Virgínia depois que o negro
chegou. Além das chuvas, havia a regá-los, agora, o suor africano – suor e
sangue.
Viu dois séculos de chicote a lacerar carnes e ouviu dois séculos de
lágrimas, gemidos e lamentosos uivos de dor. E viu a América ir saindo dessa
dor, como a pérola, filha do sofrimento do molusco, nasce na concha...
Viu, depois, a Aurora da noite de duzentos anos: Lincoln. O branco bom
disse: Basta! Ergueu exércitos e das unhas de Jefferson Davis arrancou a pobre
carne-coisa.
As algemas caíram dos pulsos, mas o estigma ficou. Às algemas de ferro
se substituíram as algemas morais do pária. O sócio branco negava ao sócio
negro a participação de lucros morais na obra comum. Negava a igualdade e
negava a fraternidade, embora a Lei, que paira serena acima do sangue,
consagrasse a equiparação dos dois sócios.
E viu Jim que Justiça não passava de uma pura aspiração – e que só há
justiça na terra quando a força a impõe.
Jim: “Hei de fazer-me força e impor a justiça”, murmurou o grande
negro.
Em sua testa larga, profunda ruga se abriu. Seus olhos se cerraram e Jim
permaneceu imóvel, como siderado por uma ideia de gigante.
Lobato, 2021, p. 279-280.
Excerto 5
Lentamente despertava a massa negra do longo letargo de submissão, e
tremia, de narinas ao vento, como o tigre solto na jungle. Toda a
barbárie atávica, todos os apetites em recalque, rancores impotentes,
injustiças padecidas, todas as vergastadas que laceraram a sua pobre carne até
o advento de Lincoln e, depois de Lincoln, todas as humilhações da desigualdade
de tratamento – essa legião de fantasmas irrompeu da alma negra como serpes de
sob a laje que mão imprudente levanta. E a raça maior, que através dos séculos
não se atrevera a sonho maior que o da mesquinha liberdade física, passou a
sonhar o grande sonho branco da dominação... (...) Amava Jim a América. Nos
alicerces do colossal edifício, o cimento ligador dos blocos fora amassado com
o suor dos seus ancestrais. A América surgira do esforço braçal de um dirigido
pelo esforço mental de outro, e, pois, tanto lhe falava ao sangue como ao do
mais orgulhoso neto dos pioneiros louros.
Lobato, 2021, p. 288-289.
Excerto 6
Jim sentia no ar as ondas de fluidos explosivos, um perfeito ambiente de
pólvora. O solo latejava pulsações vulcânicas.
Tremeu o negro diante da sua obra – e, sem vacilar, foi ao encontro do
Kerlog. O momento impunha a conjugação da sua força com a do líder branco.
Defrontaram-se os dois chefes como duas forças da natureza, contrárias
nos seus destinos, inimigas pela voz do sangue, mas irmanadas no momento por um
nobre objetivo comum.
Lobato, 2021, p. 289.
Excerto 7
No primeiro ímpeto,
Kerlog apostrofou o chefe negro.
Kerlog: “Vê tua obra, Jim! A América transformada num vulcão e ameaçada de
morte!”
O negro cravou no líder branco os olhos frios, por um instante animados
de estranho fulgor.
Jim: “Não minha, presidente Kerlog! Não é minha esta obra. É sua, é dos
seus, é de Washington, é de Lincoln. Vós, brancos mentistes na lei básica. E ou
confessais que mentistes ou reconheceis que a situação é perfeitamente normal.
Que aconteceu, presidente Kerlog? Houve um pleito e as urnas libérrimas
conferiram a vitória a um cidadão elegível. Acha o presidente Kerlog que o
pacto Constitucional sofreu lesão?
Naquele peito a peito, Jim Roy dominava o adversário.
Lobato, 2021, p. 289.
Excerto 8
Jim: “Mas não se
trata disso”, continuou ele. “O momento não é para recriminações – e nesta
matéria o presidente Kerlog bem sabe que jamais um branco venceria um negro...
O fato está consumado e, como chefes supremos das duas raças, a nós só incumbe
atender à salvação comum. Se não contivermos de rédeas presas – eu, o monstro
da ebriedade negra, o presidente Kerlog, o monstro do orgulho branco, a chacina
vai ser espantosa...”
Kerlog: “Ninguém sabe disso melhor que eu”, retrucou o chefe da nação.
“Nos estados do Sul já lavra o incêndio...”
Lobato, 2021, p. 289.
Excerto 9
O negro deu um salto.
Jim: “Jim o apagará! Jim manterá em cadeia de aço a pantera africana.
Ele a domina com os olhos, como o soba a dominava no kraal donde
a rapina dos brancos a tirou. Jim é rei!”
Era tal a firmeza com que emitia o grande negro aquelas palavras que o
tom de superioridade do líder branco se demudou em admiração.
Viu Kerlog que tinha diante de si não um feliz aventureiro político, mas
uma dessas incoercíveis expressões raciais a que chamamos condutores de povos.
Pela primeira vez, enfrentava um homem que era algo mais que um homem. E, do
fundo do coração, lamentou Kerlog que a incompatibilidade racial o separasse de
tamanho vulto.
Lobato, 2021, p. 289.
Excerto 10
Jim prosseguiu:
Jim: “Mas só o farei se o Presidente Kerlog, do seu lado, açaimar o
orgulho branco. Eu domino com o olhar e a palavra terrível. O Presidente Kerlog
domina com a força do estado. Em nossas mãos está, pois, a paz da América.”
O líder branco baixou a cabeça. Meditava.
Kerlog: “Pois salvemos a América, Jim!”, disse erguendo-se. “Açaima tu a
pantera negra que meterei luvas de ferro nas unhas da águia loura.”
Um leal aperto de mão selou aquele pacto de gigantes.
Lobato, 2021, p. 290.
Excerto 11
Kerlog: “Mas a pantera que conte com o revide da águia!”, concluiu o líder
branco depois que as mãos se desapertaram. “A águia é cruel...”
Jim Roy retesou-se de todos os músculos, como a fera que se põe em
guarda.
Jim: “Ameaça-nos como sempre? Ameaça-nos até no momento em que a
América ou rasga a sua Carta e afoga-se num mar de sangue ou submete-se à minha
direção?”
Lobato, 2021, p. 290.
Excerto 12
Kerlog olhou-lhe firme nos olhos e murmurou com nitidez de lâmina:
Kerlog: “Não ameaço. Previno lealmente. Vejo em ti uma força demasiado
grande para que eu a enfrente com palavras. Estamos, face a face, não dois
homens, sim duas almas raciais arrostadas num duelo decisivo. Não fala neste
momento o presidente Kerlog. Fala o branco de crueldade fria, o mesmo que vos
arrancou do kraal, o mesmo que vos torturou nos brigues, o mesmo
que vos espezinhou nos algodoais. Como há razões de estado, Jim, há razões de
raça. Razões sobre-humanas, frias como o gelo, cruéis como o tigre, duras como
o diamante, implacáveis como o fogo. O Sangue não raciocina, como os filósofos.
O Sangue sidera, qual o raio. Como homem, admiro-te, Jim. Vejo em ti o irmão e
sinto o gênio. Mas, como branco, só vejo em ti o inimigo a esmagar...”
Lobato, 2021, p. 290.
Excerto 13
O largo peito de Jim
Roy arfava. A fera ancestral contida nele transpareceu no fremir das ventas
grossas.
Jim: “E não trepidará o branco em esmagar a América se for condição
para esmagar o negro?”, rugiu.
Kerlog retrucou calmamente, como se pela sua boca falasse o próprio deus
do Orgulho:
Kerlog: “Acima da América está o Sangue.”
Lobato, 2021, p. 290.
Excerto 14
Jim abaixou a cabeça. Viu aberto à sua frente o eterno abismo. O
dolicocéfalo louro tinha a dureza do diamante. Armado de mais cérebro, dos
vales dos Ganges partira para a atrevida aventura conquistadora e vencera
sempre, e não cedera nunca. Era o nobre, o duro, o eterno senhor cujo raio
fulmina. Era o criador. Do rude instinto de matar do troglodita, extraíra a sua
grande arte, a Guerra. Forjara a espada, dominara o gás que explode, violara o
profundo das águas e a amplidão dos ares. E, com esse feixe de armas
incoercíveis, rodeara, como de baionetas, o diamante do seu Orgulho.
Lobato, 2021, p. 290.
Excerto 15
Tudo isso, num clarão, viu Jim Roy naquele homem que, sereno, o
arrostava. E o que ainda havia de escravo no sangue do grande negro vacilou.
Jim sentiu-se retina ferida pelo sol. Mas sem demora reagiu. Ergueu-se e, mais
firme que nunca, disse, com durezas de rocha na voz:
Jim: “Seja! E porque assim é, dei o supremo golpe. A América é tão sua
como minha. Tenho-a nas mãos. Vou dividi-la.”
Kerlog: “A justiça está contigo, Jim. Manda a justiça dividir a América.
Mas o Sangue está acima da justiça. O Sangue tem a sua justiça. E, para a
justiça do Sangue Ariano, é um crime dividir a América.
Jim baixou a cabeça novamente e emudeceu. Pela segunda vez, sentia-se
retina ofuscada pelo sol.
Lobato, 2021, p. 291.
Excerto 16
O presidente Kerlog aproximou-se dele e, com as mãos nos seus ombros
largos, disse:
— “Vejo-te grande como Lincoln, Jim, e é com lágrimas nos olhos que
contemplo tua figura imensa, mas inútil... Adeus. Atendamos ao instante,
açaimemos as nossas raças, mas não fique entre nós sombra de mentira. O teu
ideal é nobilíssimo, mas à solução de justiça com que sonhas só poderemos
responder com a eterna resposta do nosso orgulho: Guerra!”
E os dois seres humanos, subsistentes no imo dos dois líderes raciais,
abraçaram-se com lágrimas...
Miss Jane fez uma pausa, atenta à minha comoção. Aquele duelo de
gigantes agitara fundo o meu ser. Tive a impressão de que jamais a história
oferecera lance mais augusto – nem mais cruel. Vi claros inúmeros pontos até
ali obscuros na marcha da caravana que do fundo das idades vem vindo a
entredegolar-se com sanhudos ódios. Vi um sonho de Ariel esfumado nas alturas,
a Justiça Humana, e vi na terra, onipotente, a Justiça do Sangue, um raio
cego...
Ayrton: E depois?, perguntei. Reentrou na paz a América?
Jane: Sim, respondeu Miss Jane. Os dois líderes entraram a agir de
pronto. A ação de um foi tão rápida e segura como a do outro. A pantera negra
recolheu as garras e a águia loura enluvou as unhas.
Mas o beluário negro sentia-se ferido. As palavras que a raça branca
pusera na boca de Kerlog cravaram-se-lhe no coração como as zagaias dos seus
avós no peito dos fulvos leões africanos – mortalmente...
Lobato, 2021, p. 290.
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