domingo, 10 de setembro de 2023

Notícias de 2023 para Monteiro Lobato

O projeto Literatura Brasileira no XXI é realizado por meio de uma parceria formada entre a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e a SP Leituras – Associação Paulista de Bibliotecas e Leitura. 

Em abril de 2023 foi realizada a oficina Cartas, história e democracia, ministrada pelo professor e pesquisador Emerson Tin. A oficina abordou a importância do gênero epistolar para o cultivo da democracia, enquanto intercomunicação familiar, política, diplomática, comercial ou religiosa.




Muitos escritores relevantes ao longo do tempo utilizaram o gênero epistolar como uma forma de manifestação. Entre eles, Monteiro Lobato, que além da vasta correspondência pessoal nos deixou a Barca de Gleyre – uma obra singular pela natureza do seu conteúdo.

Como parte das atividades propostas na oficina, foi pedido aos participantes que escrevessem uma carta a uma personalidade escolhida a seu critério. Foi a oportunidade perfeita para, de uma forma inusitada, endereçar uma missiva a Monteiro Lobato contando as novidades sobre o Brasil de 2023.

As cartas escritas pelos participantes podem ser encontradas no blog do projeto. A carta endereçada a Monteiro Lobato segue abaixo.

Carta de Taís para Lobato






Monteiro Lobato e as Mulheres (Tradutoras), por Taís Diniz Martins

 Mulheres por mulheres sejam traduzidas.”

Um dos objetivos do Observatório Lobato é intensificar as pesquisas acerca das atividades tradutórias de Monteiro Lobato. Este post tem como intuito compartilhar parte de estudos que já estão em andamento, especialmente no que diz respeito a uma área ainda pouco explorada: as relações que Lobato estabeleceu com as tradutoras de sua época, e quaisquer impactos que eventualmente tenham acontecido em suas carreiras por sua influência.

O papel de Monteiro Lobato como agente propagador das traduções e adaptações de língua estrangeira para a língua portuguesa é amplamente (re)conhecido através de estudos historiográficos, tradutórios e literários. Não é possível estabelecer precisamente quando suas atividades tradutórias tiveram início, mas há indícios de que tenham começado no princípio de sua vida adulta, logo nos primeiros anos de casado, em 1909.

Apesar de termos indicativos de que Lobato tenha empreendido atividades tradutórias em período anterior (em 1904, relata a Rangel o desejo de traduzir O Príncipe, de Machiavel), consideram-se as traduções dos artigos do jornal Weekly Times para os periódicos e jornais brasileiros como sendo o marco inicial da sua carreira como tradutor.

Com o decorrer do tempo, e com as mudanças em sua vida pessoal e consequentemente em sua vida profissional, o que era uma forma de complementar sua renda e uma maneira de se manter ativo no meio jornalístico tornou-se um objetivo. Lobato descobrira a necessidade de apresentar as traduções para o público brasileiro de uma forma que elas fossem mais acessíveis e de acordo com a linguagem corrente. Além disso, sua atividade como editor requeria novidades constantes para atender e formar um público leitor. Para maiores detalhes sobre estas atividades, sugerimos a leitura do livro Um país se faz com tradutores e traduções, do Prof. Dr. John Milton.

Ainda em sua função como editor – e posteriormente na função de uma espécie de consultor para Octalles Marcondes Ferreira, da Cia Editora Nacional – também colaborou para a difusão de diversos títulos estrangeiros no mercado editorial brasileiro. Em uma de suas cartas para o amigo Godofredo Rangel, Lobato afirma que fiscalizava as traduções que seriam publicadas pela Companhia Editora Nacional. Seria ainda mais incisivo ao dizer que Octalles Marcondes Ferreira preferia perder dinheiro a “enfiar no público” uma tradução que ele, Lobato, condenasse.

Nos anos finais de sua vida, depois de sofrer uma série de infortúnios financeiros, a tradução foi o meio de subsistência de Lobato. O que antes ele fazia por prazer e por opção, passou a fazer parte do rol de suas obrigações.

MULHERES POR MULHERES SEJAM TRADUZIDAS

A citação que dá início a este texto faz parte de uma carta que Monteiro Lobato enviou a sua sobrinha e nora Gulnara Lobato de Moraes. Ela expressa um pouco da visão, avançada para época, sobre o papel feminino na sociedade brasileira.

Ana Carolina Siqueira Veloso, em sua dissertação, Perfis femininos em livros infantis de Monteiro Lobato (1920-1940), diante da impossibilidade de associar formalmente a figura de Lobato aos movimentos feministas dos anos 1920-1940, e tendo em vista não ter encontrado nenhum registro formal, aventa a possibilidade de ele ter sido um simpatizante da causa feminista. Veloso associa este fato a vários registros das ideias de Lobato, distribuídos entre sua correspondência pessoal, em artigos publicados em seus livros e na imprensa na fabulação das personagens femininas em sua obra O Sítio do Picapau Amarelo, e ao fato de manter um relacionamento de amizade em pé de igualdade com várias mulheres.

Ainda segundo Veloso, a visão acerca do gênero feminino de Lobato diferia da maioria dos intelectuais e movimentos da época. Após uma reflexão sobre o relacionamento de Lobato com sua noiva, e depois esposa, Purezinha, a pesquisadora se questiona também sobre qual seria o modelo ideal de mulher ou, conforme escreve, “a mulher dos sonhos de Lobato”.

A pesquisadora transcreve um trecho de uma carta de Lobato para a noiva em que ele lista uma série de adjetivos, descrevendo o seu ideal feminino, os quais citaremos aqui em forma de excertos:  inteligentemente sincera/ engenhosamente sincera/ capciosamente maliciosa/ enérgica e teimosa/ enérgica sob aparência de fraquíssima/ voluntariosa sob uma capa de inércia/ combativa sob forma de resignadaPara uma análise mais aprofundada sobre Maria da Pureza de Gouvêa Natividade, a Purezinha, recomendamos a leitura da tese da Dra. Raquel Endalécio Martins Um perfil de Maria da Pureza Monteiro Lobato.

É muito interessante observar as características eleitas por Lobato, como sendo as mais atrativas para ele, pois as encontraremos em boa parte das mulheres com quem manteve relações de amizade e profissional como por exemplo Edy Lima, Maria Eugênia Celso, Nize Terezinha, Francisca de Basto Cordeiro, Leonor de Aguiar e Yaynha Pereira Gomes.

Maslowa Gomes Venturi, filha de Yaynha, tornar-se-ia também tradutora, tendo traduzido livros para as editoras Brasiliense, Companhia Editora Nacional e Ibrasa, além de ter colaborado com a imprensa em artigos de crítica literária. Para um estudo mais aprofundado sobre Yaynha Pereira Gomes, recomendamos a leitura do capítulo Correspondência com Yaynha Pereira Gomesdo Dr. Sílvio Tamaso D’Onófrio.

Aqui, abordaremos a relação de Lobato com três mulheres tradutoras: Gulnara Lobato de Moraes, Francisca de Basto Cordeiro e Leonor de Aguiar.

GULNARA LOBATO DE MORAES PEREIRA


Gulnara, além de sobrinha tornou-se também nora de Lobato quando se casou com seu filho, que viria a falecer prematuramente, Edgard Monteiro Lobato. Segundo o artigo da Dra. Denise Bertolucci, intitulado A família Monteiro Lobato nos Estados Unidos da América: os filhos Edgar e Guilherme, Edgard seria o sucessor natural de Lobato no mundo das letras, tendo demonstrado talento para a escrita e para a tradução. Entre as poucas obras que traduziu encontramos A volta do Capitão Blood (1932), de Rafael Sabatini, A Caravana Verde (1933), de Oliver Sandys, e Beau Geste (s/d), de P.C Wren, revisada por Monteiro Lobato.

Apesar de sua filha caçula Ruth, também ter incursionado pelo mundo das traduções, traduzindo em parceria com o pai Uma folha na tempestade (1941), de Lin Yutang e Biografia da Terra (1946), de George Gamow seria a sua sobrinha e nora Gulnara Lobato de Moraes Pereira a escolhida de Lobato para receber o seu conhecimento sobre o mundo das traduções. Com o falecimento do filho, percebendo a nora em dificuldades econômicas, e com um filho pequeno para criar, Lobato tratou de instruir, conduzir e inserir Gulnara no mercado tradutório, preparando a nora para exercer a profissão de tradutora e, com isso, garantir o seu sustento e do neto.

Gulnara, apesar de possuir pouca instrução formal, segundo seu depoimento para o Museu da Imagem e do Som apresentava muita habilidade para traduzir. Foi desta forma que Lobato impactou a vida de Gulnara, levando-a a estabelecer uma carreira profissional da qual renderiam bons frutos. Abaixo um levantamento parcial sobre as traduções realizadas por Gulnara Lobato de Moraes Pereira:


FRANCISCA (CAROLINA SMITH DE VASCONCELOS) DE BASTO CORDEIRO

Francisca Cordeiro era uma aristocrata e, de uma forma ou de outra, sempre esteve envolvida em atividades literárias, sendo uma das protagonistas no que diz respeito às intervenções culturais nas décadas de 1920 e 1930.

Foi editora-proprietária da revista A Única, totalmente editada, escrita e impressa por mulheres, e participou em outros periódicos voltados exclusivamente ao público feminino, como a revista Walkyrias.

Uma biografia mais completa de Francisca de Basto Cordeiro foi apresentada no capítulo Historiografia da tradução de For whom the bell tolls, de Ernest Hemingway, no Brasil.

Neste capítulo foi abordada a relação de Lobato, que foi o editor de Jardim Secreto, o primeiro livro publicado por Francisca, e a trajetória da tradução da obra de Hemingway. Ao que tudo indica Francisca foi incumbida pela Editora Pongetti de traduzir Por Quem os Sinos Dobram.

Esta suposição surgiu por meio de uma notícia publicada no Jornal O Imparcial, reproduzida ao lado, onde é informado que Francisca estava prestes a finalizar a tradução do texto de Hemingway.




Em uma investigação mais aprofundada, foi possível constatar que outras fontes também creditavam a autoria da tradução a Francisca, tornando ainda mais plausível a hipótese de ter sido ela a autora da tradução que Monteiro Lobato relata estar traduzindo, enquanto se encontrava encarcerado, em 1941.

Não foram encontrados registros de que essa obra tenha sido efetivamente publicada pela editora Irmãos Pongetti, e não havia subsídios para que fosse possível determinar, o motivo pelo qual a tradução de Francisca não tenha sido publicada e a tradução de Lobato tenha sido lançada pela Companhia Editora Nacional.

Algumas suposições foram feitas, mas a pesquisa foi finalizada sem elementos suficientes para determinar o que de fato ocorreu no percurso editorial desta obra. Posteriormente à publicação do capítulo a mestre em Teoria da História, tradutora e pesquisadora Denise Bottman, após entrar em contato com o conteúdo do capítulo, forneceu uma informação que pode modificar esta narrativa no sentido de trazer uma aproximação maior com os possíveis motivos da reviravolta editorial.


Em entrevista datada de 15/05/1941, concedida por Francisca ao jornal O Imparcial, o jornalista descreve que foi recebido pela tradutora enquanto ela estava trabalhando na finalização dos últimos capítulos do texto de Hemingway.

Transcrevemos um trecho da reportagem:

Agora conversando com a traductora brasileira de “For Whom te Bell Tolls”, o repórter recolhe uma impressão totalmente diversa e nem por isso menos interessante. D. Francisca Cordeiro Bastos não gosta de Hemingway e nem quer dar o seu nome à tradução do último romance do autor de “The Sun Also Rises”.

— Não gosto de Ernest Hemingway — diz ella num ar de desencanto cruzando as mãos sobre o collo. E depois, abrindo o volume que está sobe a sobre a mesa. — É um bruto. Aliás basta olhar para o seu retrato e tem-se logo esta impressão. Olhe só para as mãos. Si isso são mãos de artista! E os braços? Braços fortes e cabeludos de camponez da Carolina do Sul. Não, não gosto deste escritor. Vejo que escreve com um enorme poder de suggestão e que os seus diálogos são estupendamente reaes. Mas, oh! Como é grosseiramente realista e como trata mal as suas figuras de mulher! Os seus sentimentos são de um bárbaro e ele não comprehende, nem acceita as bellezas do espirito. É um bruto! (sic).”

A declaração da tradutora afirmando que não deseja ter o seu nome associado a Ernest Hemingway é um elemento norteador para o esclarecimento deste episódio. Abaixo, encontra-se um levantamento parcial sobre as traduções realizadas por Francisca de Basto Cordeiro:


LEONOR DE AGUIAR

Leonor de Aguiar pode ser considerada uma das mulheres mais interessantes e fascinantes de sua época. Infelizmente, os dados sobre a sua biografia são escassos. Até o momento, somente foi possível encontrar reportagens nos jornais sobre as suas apresentações como cantora lírica e depoimentos de amigos que descrevem sua personalidade marcante e vanguardista.

Leonor foi pensionista do governo do estado de São Paulo e pôde realizar seus estudos de canto na Europa, inicialmente em Paris e Roma e posteriormente em Berlin. Tem-se notícia de que passou 8 anos estudando no exterior, e este seria um dos motivos pelos quais teria desenvolvido suas habilidades com línguas estrangeiras, tornando-se fluente em pelo menos francês, italiano e alemão.

O que apresentaremos aqui são os principais fatos que unem seu percurso de vida a Monteiro Lobato. Diferentemente de Gulnara, que era membro da família de Lobato, e de Francisca, que teve seu primeiro livro editado por Lobato, não é possível até o momento constatar como Leonor de Aguiar e Monteiro Lobato se conheceram.

Porém, podemos supor que os vários amigos em comum e o convívio com a intelectualidade paulistana, contemporânea aos dois, possivelmente os tenha aproximado.

A amizade entre eles pode ser constatada através da narrativa de terceiros, da correspondência de Lobato para Leonor e de menções de Leonor a Lobato em uma carta para um amigo em comum.

Entre as evidências documentais, temos uma carta que Lobato escreveu para Leonor enquanto cumpria a pena à qual fora condenado sob a acusação de ter cometido delito contra a Segurança Nacional durante o governo Vargas. A carta é datada do dia 18/04/1941 (aniversário de Lobato) e nela ele fala sobre a sua rotina na prisão, sobre o fluxo intenso de visitas que recebia, e que o impediam de trabalhar na tradução de Kim, de Rudyard Kipling, entre outras peculiaridades da vida no cárcere.

Pudemos encontrar também um bilhete sem data de Lobato para Leonor. Para alguns pesquisadores, este documento sugeriria uma amizade íntima entre os dois, especialmente pelo fato de o bilhete possuir um beijo marcado de batom em seu verso.

Leonor, Lobato esteve aqui às 4,45 e deu com o nariz na porta. Voltará outro dia. Recebeu o bilhete [rasura] na Editora. Me disse telefonar para 72077, antes do almoço, para marcar encontro. Adeus, anjo! Lobato.”

A narrativa sobre o possível relacionamento entre Lobato e Leonor de Aguiar é corroborada por Ênio Silveira no livro Editando o Editor. Nele, o editor relata como conheceu Monteiro Lobato por intermédio de Leonor de Aguiar e as peculiaridades deste encontro.

Silveira Bueno, filólogo e escritor, também relaciona Leonor a Lobato, porém em um contexto diferente. Entre os anos de 1925 e 1926, Silveira Bueno teve uma questão mal resolvida com Monteiro Lobato acerca da autoria de uma tradução, lançando sobre ele uma série de acusações. Este tema pode ser aprofundado no capítulo 2 do livro da 3ª Jornada Monteiro Lobato no texto intitulado Monteiro Lobato e Silveira Bueno, os tradutores de Henry Ford.

O capítulo apresenta a primeira parte de um estudo que será finalizado este ano e que aborda as questões levantadas por Silveira Bueno. Uma das acusações de Bueno, que pesa sobre Lobato, refere-se à suposta quebra de um acordo e ao suposto não pagamento dos seus honorários como tradutor à época da falência da Cia Graphico-Editora Monteiro Lobato. Bueno alega que tal conduta era comum com outros tradutores também, e para confirmar tal afirmação, pede que se pergunte a Leonor de Aguiar se ela também fora vítima de tal “golpe”.

Leonor, ao que parece, nunca se manifestou endossando as acusações, muito pelo contrário, as menções que faz ao amigo Lobato são carinhosas e demonstram sua preocupação com a preservação de seu legado, conforme podemos observar nos excertos de sua correspondência com Anísio Teixeira, datada de 13 de maio de 1962:

” (…) Vi os maravilhosos jardins orientais e tropicais, os quadros, e de 1 a 5 ele me mostrou os mais raros livros. Sobre quasi todos citei frases e versos de côr, finalmente ele me disse: “Acompanho diariamente professores do mundo inteiro, jamais encontrei um que, melhor do que a senhora, possua nossa língua e nossa literatura”. Que pena o nosso querido Lobato não ler isto! Adoro críticas de amigos talentosos, ele costumava dizer que tinha um anel de brilhante azul de 6 quilates (igual ao que sempre trago no dedo com especial carinho, pois meu pai deu-o a minha mãe no dia em que nasci e ela me o deu no dia do meu primeiro concerto) esse anel me seria dado no dia em que não me gabasse de cousa alguma…. mas o Lobato acrescentava incontinente: “Pelo menos quando você afirma que sabe algo, sabe de verdade. (…)”

” (…) IMPORTANTE: Em N. York, além dos museus (conferências e concertos diários e grátis) do meu amigo, bailarino e coreógrafo Donald Saddler com 2 big hits em Broadway, vou diariamente à biblioteca Donnel, fundada pelo comerciante dêsse nome. Além de toda literatura inglesa há belas obras em 40 idiomas estrangeiros, mesmo no nosso português clandestino, como diria o Lobato. Dele não há um só livro.  Disse lá que [ilegível] esforços para obtê-los graciosamente no Brasil. Nós que o amávamos e amamos, nada poderíamos fazer? Você não poderia obter do editor as obras completas discretamente mencionando meu nome pois detesto esquecer o que prometo. Aliás prometi, se fosse possível! (…)”

Consultamos a New York Public Library para confirmar se os volumes de Obras Completas que constam no acervo da instituição possuíam algum registro de doação feito em nome de Leonor de Aguiar. Os responsáveis pelo acervo responderam relatando que este tipo de informação somente é fornecida in loco, visto que a Dunnel Library não existe mais no mesmo local físico, tendo sido incorporada ao sistema de bibliotecas da cidade de Nova Iorque.

O conteúdo dos dois trechos da carta não parece partir de alguém que teria sido ludibriada, e sim de alguém que tinha muito respeito, carinho e admiração por Lobato.

Leonor tinha uma carreira artística consolidada. Nos registros dos jornais de 1920, há várias menções aos seus recitais e participações em eventos da alta sociedade e da esfera política. Leonor convidava e era convidada, a sua influência não dependia da influência de Lobato.

No entanto, não é possível medir o impacto que Lobato teve na carreira tradutória de Leonor – ainda que ela tenha traduzido alguns livros para a Companhia Editora Nacional, na qual Lobato possuía atuação significativa – mas podemos pressupor que a amizade entre eles impactou a vida de ambos.

Análises mais aprofundadas sobre a trajetória da tradutora serão apresentadas em breve. Quanto ao levantamento parcial das traduções realizadas por Leonor de Aguiar, segue o quadro abaixo:


Algumas imagens das capas e das folhas de rosto de obras traduzidas por Leonor de Aguiar.



Esperamos que este post possa colaborar para fornecer uma visão mais ampla do papel de Monteiro Lobato no cenário literário e tradutório brasileiro, especialmente no que diz respeito ao incentivo, valorização e encorajamento que ele dispendeu às mulheres que atravessaram a sua vida pessoal e profissional.

Esperamos também ter ressaltado a importância destas e de tantas outras mulheres tradutoras, bravas operárias das letras, que na maioria das vezes ocuparam e ocupam um lugar secundário no vasto mundo da literatura.

Gulnara, Francisca e Leonor são apenas três nomes entre um universo de tradutoras brasileiras que tiveram seus nomes obscurecidos, senão apagados, nos nossos registros. Por isso a importância e a relevância de desenvolvermos mais pesquisas nesta área.

LEONOR, UMA INSPIRAÇÃO


Em 2003, Maria Adelaide Amaral lançou pela Editora Record, Estrela Nua: Amor e Sedução. O livro faz parte da Coleção Amores Extremos, que tem como proposta trazer novelas inéditas sobre o amor e reunir uma seleção das melhores escritoras brasileiras da atualidade.

Durante as pesquisas sobre Leonor encontrei uma reportagem anunciando o lançamento do livro, e para minha surpresa e felicidade, descobri que uma das personagens do livro foi inspirada em Leonor de Aguiar. É uma linda homenagem da autora que além de jornalista, escritora, dramaturga e acadêmica da Academia Paulista de Letras, é tradutora.

Entre as traduções e adaptações de Maria Adelaide do Amaral estão:

  • Krapp’s Last Tape (A Última Gravação) Teatro – Beckett 1988
  • The Edwardians (Grades de Ouro Ed. Globo)
    Romance – Vita Sackeville West (1987)
  • Six Degrees of Separation (Seis Graus de Separação)
    Teatro – John Guare (1993)
  •  Kean – Teatro – Jean-Paul SSartre (994)
  • Three Tall Women (Três Mulheres Altas)
    Teatro Edward Albee (1994)
  • Cenas de um Casamento – Teatro – Ingmar Bergman (l996)
  • Decadência (Decadence) – Teatro – Steven Berkoff (1997)
  • Joana Dark – a Re-Volta – Carolyn Gage (2000)
  • Lettie and Lotte – Peter Shaffer (2000)
  • Dúvida – Teatro – John Patrick Shanley (2006)
  • O Expresso do Por do Sol – Cormac McCarthy (2012)

Além de fazer estas traduções e adaptações, ela adaptou para o teatro O Evangelho segundo Jesus Cristo, de José Saramago, e Joana Dark a re-volta, de Carolyn Gage.

Referências:

As fontes de pesquisa deste post estão, em parte, incorporadas ao texto através de hiperligações para facilitar o acesso às informações. As imagens das capas e das folhas de rosto dos livros foram captadas da internet e do meu acervo pessoal. A foto de Gulnara Lobato Moraes Pereira faz parte do acervo do Museu Monteiro Lobato, as fotos de Francisca de Basto Cordeiro e de Leonor de Aguiar foram extraídas da internet. As demais fontes, cito abaixo:

A Barca de Gleyre Tomos I e II – Monteiro Lobato

Cartas Escolhidas Tomos I e II – Monteiro Lobato

Na Antevéspera – Monteiro Lobato

Cartas de Amor – Monteiro Lobato

Editando o Editor 3: Ênio Silveira – Jerusa Pires Ferreira

Na Tormenta da Vida: Memórias de um Batalhador – Francisco da Silveira Bueno

Figuras de Autor, Figuras de Editor – Cilza Carla Bignotto










Referências à etnia negra em O choque das raças ou o presidente negro – um romance do ano 2228, por Vanete Santana-Dezmann



O livro O choque das raças ou o presidente negro – um romance do ano 2228, de Monteiro Lobato, recentemente passou a ser apontado como um romance racista. Para que cada um possa avaliar por si mesmo as referências a pessoas da etnia negra e a Jim Roy que lá se encontram, reproduzo-as abaixo.
A quem quiser conhecer minha análise deste que foi o único romance de Lobato, indico Entre metafísica, distopia e mecenato, publicado em 2021, o qual inclui a primeira edição do romance.
Parte da análise pode ser encontrada em algumas palestras disponíveis na internet: “Por que O presidente negro não foi publicado nos Estados Unidos”; “Quem fala por Lobato em O presidente negro?” e “Entre metafísica, distopia e mecenato”. Para entender algo, nada melhor do que conhecer. Conhecimento é poder! O conhecimento liberta!

Excertos 1 a 3: descrição de Jim Roy
Era Jim Roy, na realidade, um homem de imenso valor. Nascera fadado a altos destinos, com a marca dos condutores de povos impressa em todas as facetas da sua individualidade.
Como organizador e meneur, talvez superasse os mais famosos organizadores surgidos entre os brancos. A história da humanidade poucos exemplos apresentava de uma eficiência igual à sua. Consagrara-se desde muito jovem à execução dum plano de gênio, traçado nas linhas mestras com a mais perfeita compreensão do material humano sobre que pretendia agir.
Lobato, 2021, p. 259.

Ia realizar um ideal. O problema negro da América teria com ele no governo a única solução justa.
Lobato, 2021, p. 316.

E Jim sonhava o maior sonho que ainda se sonhou na América.
Lobato, 2021, p. 316.

Excerto 4
Às 9 e 45, aproximou-se da janela e espalhou o olhar pelo casario de Washington. O panorama que viu, entretanto, foi bem diverso. Descortinou todo o lúgubre passado da raça infeliz. Viu, muito longe, esfumado pela bruma dos séculos, o humilde kraal africano visado pelo feroz negreiro branco, que em frágeis brigues vinha por cima das ondas, qual espuma venenosa do oceano. Viu o assalto, a chacina dos moradores nus, o sangue a correr, o incêndio a engolir as palhoças. Depois, o saque, o apresamento dos homens e mulheres válidos, a algema que lhes garroteava os pulsos, a canga que os metia dois a dois em comboios sinistros, tocados a relho para a costa. Viu, como goelas escuras, abrirem-se os porões dos brigues para tragar a dolorosa carne de eito. E recordou o interminável suplício da travessia… Carga humana, coisa, fardos de couro negro com carne vermelha por dentro. A fome, a sede, a doença, a escuridão. Por sobre as cabeças da carga humana, um tabuado. Por cima do tabuado, rumores de vozes. Eram os brancos. Branco queria dizer uma coisa só: crueldade fria…
Viu depois o desembarque. Terra, árvores, sol – não mais como em África. Nada deles, agora – nem a terra, nem as árvores, nem o sol. Caminha, caminha! Se um tropeça, canta-lhe o látego no lombo. Se cai desfalecido, trucidam-no. A caravana marcha, trôpega, e penetra nos algodoais…
Viu Jim viçarem luxuriosos os algodoais da Virgínia depois que o negro chegou. Além das chuvas, havia a regá-los, agora, o suor africano – suor e sangue.
Viu dois séculos de chicote a lacerar carnes e ouviu dois séculos de lágrimas, gemidos e lamentosos uivos de dor. E viu a América ir saindo dessa dor, como a pérola, filha do sofrimento do molusco, nasce na concha…
Viu, depois, a Aurora da noite de duzentos anos: Lincoln. O branco bom disse: Basta! Ergueu exércitos e das unhas de Jefferson Davis arrancou a pobre carne-coisa.
As algemas caíram dos pulsos, mas o estigma ficou. Às algemas de ferro se substituíram as algemas morais do pária. O sócio branco negava ao sócio negro a participação de lucros morais na obra comum. Negava a igualdade e negava a fraternidade, embora a Lei, que paira serena acima do sangue, consagrasse a equiparação dos dois sócios.
E viu Jim que Justiça não passava de uma pura aspiração – e que só há justiça na terra quando a força a impõe.
Jim: “Hei de fazer-me força e impor a justiça”, murmurou o grande negro.
Em sua testa larga, profunda ruga se abriu. Seus olhos se cerraram e Jim permaneceu imóvel, como siderado por uma ideia de gigante.
Lobato, 2021, p. 279-280.

Excerto 5
Lentamente despertava a massa negra do longo letargo de submissão, e tremia, de narinas ao vento, como o tigre solto na jungle. Toda a barbárie atávica, todos os apetites em recalque, rancores impotentes, injustiças padecidas, todas as vergastadas que laceraram a sua pobre carne até o advento de Lincoln e, depois de Lincoln, todas as humilhações da desigualdade de tratamento – essa legião de fantasmas irrompeu da alma negra como serpes de sob a laje que mão imprudente levanta. E a raça maior, que através dos séculos não se atrevera a sonho maior que o da mesquinha liberdade física, passou a sonhar o grande sonho branco da dominação… (…) Amava Jim a América. Nos alicerces do colossal edifício, o cimento ligador dos blocos fora amassado com o suor dos seus ancestrais. A América surgira do esforço braçal de um dirigido pelo esforço mental de outro, e, pois, tanto lhe falava ao sangue como ao do mais orgulhoso neto dos pioneiros louros.
Lobato, 2021, p. 288-289.

Excerto 6
Jim sentia no ar as ondas de fluidos explosivos, um perfeito ambiente de pólvora. O solo latejava pulsações vulcânicas.
Tremeu o negro diante da sua obra – e, sem vacilar, foi ao encontro do Kerlog. O momento impunha a conjugação da sua força com a do líder branco.
Defrontaram-se os dois chefes como duas forças da natureza, contrárias nos seus destinos, inimigas pela voz do sangue, mas irmanadas no momento por um nobre objetivo comum.
Lobato, 2021, p. 289.

Excerto 7
No primeiro ímpeto, Kerlog apostrofou o chefe negro.
Kerlog: “Vê tua obra, Jim! A América transformada num vulcão e ameaçada de morte!”
O negro cravou no líder branco os olhos frios, por um instante animados de estranho fulgor.
Jim: “Não minha, presidente Kerlog! Não é minha esta obra. É sua, é dos seus, é de Washington, é de Lincoln. Vós, brancos mentistes na lei básica. E ou confessais que mentistes ou reconheceis que a situação é perfeitamente normal. Que aconteceu, presidente Kerlog? Houve um pleito e as urnas libérrimas conferiram a vitória a um cidadão elegível. Acha o presidente Kerlog que o pacto Constitucional sofreu lesão?
Naquele peito a peito, Jim Roy dominava o adversário.
Lobato, 2021, p. 289.

Excerto 8
Jim: “Mas não se trata disso”, continuou ele. “O momento não é para recriminações – e nesta matéria o presidente Kerlog bem sabe que jamais um branco venceria um negro… O fato está consumado e, como chefes supremos das duas raças, a nós só incumbe atender à salvação comum. Se não contivermos de rédeas presas – eu, o monstro da ebriedade negra, o presidente Kerlog, o monstro do orgulho branco, a chacina vai ser espantosa…”
Kerlog: “Ninguém sabe disso melhor que eu”, retrucou o chefe da nação. “Nos estados do Sul já lavra o incêndio…”
Lobato, 2021, p. 289.

Excerto 9
O negro deu um salto.
Jim: “Jim o apagará! Jim manterá em cadeia de aço a pantera africana. Ele a domina com os olhos, como o soba a dominava no kraal donde a rapina dos brancos a tirou. Jim é rei!”
Era tal a firmeza com que emitia o grande negro aquelas palavras que o tom de superioridade do líder branco se demudou em admiração.
Viu Kerlog que tinha diante de si não um feliz aventureiro político, mas uma dessas incoercíveis expressões raciais a que chamamos condutores de povos. Pela primeira vez, enfrentava um homem que era algo mais que um homem. E, do fundo do coração, lamentou Kerlog que a incompatibilidade racial o separasse de tamanho vulto.
Lobato, 2021, p. 289.

Excerto 10
Jim prosseguiu:
Jim: “Mas só o farei se o Presidente Kerlog, do seu lado, açaimar o orgulho branco. Eu domino com o olhar e a palavra terrível. O Presidente Kerlog domina com a força do estado. Em nossas mãos está, pois, a paz da América.”
O líder branco baixou a cabeça. Meditava.
Kerlog: “Pois salvemos a América, Jim!”, disse erguendo-se. “Açaima tu a pantera negra que meterei luvas de ferro nas unhas da águia loura.”
Um leal aperto de mão selou aquele pacto de gigantes.
Lobato, 2021, p. 290.

Excerto 11
Kerlog: “Mas a pantera que conte com o revide da águia!”, concluiu o líder branco depois que as mãos se desapertaram. “A águia é cruel…”
Jim Roy retesou-se de todos os músculos, como a fera que se põe em guarda.
Jim: “Ameaça-nos como sempre? Ameaça-nos até no momento em que a América ou rasga a sua Carta e afoga-se num mar de sangue ou submete-se à minha direção?”
Lobato, 2021, p. 290.

Excerto 12
Kerlog olhou-lhe firme nos olhos e murmurou com nitidez de lâmina:
Kerlog: “Não ameaço. Previno lealmente. Vejo em ti uma força demasiado grande para que eu a enfrente com palavras. Estamos, face a face, não dois homens, sim duas almas raciais arrostadas num duelo decisivo. Não fala neste momento o presidente Kerlog. Fala o branco de crueldade fria, o mesmo que vos arrancou do kraal, o mesmo que vos torturou nos brigues, o mesmo que vos espezinhou nos algodoais. Como há razões de estado, Jim, há razões de raça. Razões sobre-humanas, frias como o gelo, cruéis como o tigre, duras como o diamante, implacáveis como o fogo. O Sangue não raciocina, como os filósofos. O Sangue sidera, qual o raio. Como homem, admiro-te, Jim. Vejo em ti o irmão e sinto o gênio. Mas, como branco, só vejo em ti o inimigo a esmagar…”
Lobato, 2021, p. 290.

Excerto 13
O largo peito de Jim Roy arfava. A fera ancestral contida nele transpareceu no fremir das ventas grossas.
Jim: “E não trepidará o branco em esmagar a América se for condição para esmagar o negro?”, rugiu.
Kerlog retrucou calmamente, como se pela sua boca falasse o próprio deus do Orgulho:
Kerlog: “Acima da América está o Sangue.”
Lobato, 2021, p. 290.

Excerto 14
Jim abaixou a cabeça. Viu aberto à sua frente o eterno abismo. O dolicocéfalo louro tinha a dureza do diamante. Armado de mais cérebro, dos vales dos Ganges partira para a atrevida aventura conquistadora e vencera sempre, e não cedera nunca. Era o nobre, o duro, o eterno senhor cujo raio fulmina. Era o criador. Do rude instinto de matar do troglodita, extraíra a sua grande arte, a Guerra. Forjara a espada, dominara o gás que explode, violara o profundo das águas e a amplidão dos ares. E, com esse feixe de armas incoercíveis, rodeara, como de baionetas, o diamante do seu Orgulho.
Lobato, 2021, p. 290.

Excerto 15
Tudo isso, num clarão, viu Jim Roy naquele homem que, sereno, o arrostava. E o que ainda havia de escravo no sangue do grande negro vacilou. Jim sentiu-se retina ferida pelo sol. Mas sem demora reagiu. Ergueu-se e, mais firme que nunca, disse, com durezas de rocha na voz:
Jim: “Seja! E porque assim é, dei o supremo golpe. A América é tão sua como minha. Tenho-a nas mãos. Vou dividi-la.”
Kerlog: “A justiça está contigo, Jim. Manda a justiça dividir a América. Mas o Sangue está acima da justiça. O Sangue tem a sua justiça. E, para a justiça do Sangue Ariano, é um crime dividir a América.
Jim baixou a cabeça novamente e emudeceu. Pela segunda vez, sentia-se retina ofuscada pelo sol.
Lobato, 2021, p. 291.

Excerto 16
O presidente Kerlog aproximou-se dele e, com as mãos nos seus ombros largos, disse:
— “Vejo-te grande como Lincoln, Jim, e é com lágrimas nos olhos que contemplo tua figura imensa, mas inútil… Adeus. Atendamos ao instante, açaimemos as nossas raças, mas não fique entre nós sombra de mentira. O teu ideal é nobilíssimo, mas à solução de justiça com que sonhas só poderemos responder com a eterna resposta do nosso orgulho: Guerra!”
E os dois seres humanos, subsistentes no imo dos dois líderes raciais, abraçaram-se com lágrimas…
Miss Jane fez uma pausa, atenta à minha comoção. Aquele duelo de gigantes agitara fundo o meu ser. Tive a impressão de que jamais a história oferecera lance mais augusto – nem mais cruel. Vi claros inúmeros pontos até ali obscuros na marcha da caravana que do fundo das idades vem vindo a entredegolar-se com sanhudos ódios. Vi um sonho de Ariel esfumado nas alturas, a Justiça Humana, e vi na terra, onipotente, a Justiça do Sangue, um raio cego…
Ayrton: E depois?, perguntei. Reentrou na paz a América?
Jane: Sim, respondeu Miss Jane. Os dois líderes entraram a agir de pronto. A ação de um foi tão rápida e segura como a do outro. A pantera negra recolheu as garras e a águia loura enluvou as unhas.
Mas o beluário negro sentia-se ferido. As palavras que a raça branca pusera na boca de Kerlog cravaram-se-lhe no coração como as zagaias dos seus avós no peito dos fulvos leões africanos – mortalmente…
Lobato, 2021, p. 290

E quem ousará dizer que este livro desmerece, em algum momento, as pessoas negras?!

 

Uma atriz do Sítio do Picapau Amarelo na TV brasileira dos anos 1950

 


Participando de uma semana de eventos culturais em Espírito Santo do Pinhal, no interior do estado de São Paulo, uma noite fui surpreendido, à porta do teatro, por uma simpática e sorridente senhora que me perguntou: “Você gosta do Sítio do Picapau Amarelo?”. “Claro, gosto muito!”, respondi-lhe. E ela: “Pois saiba que eu tenho algumas fotos da primeira encenação do Sítio na TV, dos anos 50, porque eu participei da encenação, fui uma das atrizes mirins. Você gostaria de ver essas fotos?”. Incrédulo, respondi: “Claro! Por favor, traga sim as fotos amanhã que eu gostaria muito de vê-las!”. E assim foi feito. No dia seguinte, lá estava a gentil Marion com uns dois ou três retângulos de papel couché de aproximadamente 40×20 cm cada um, contendo algumas fotos em preto e branco reproduzidas neles.

Em uma ou outra das fotografias, o retrato de um pequeno garotinho em vestes elegantes, com um paletó de tonalidade cinza escuro, camisa social, uma grande cartola e uma luxuosa bengala. Era ela, que, com cerca de 7 ou 8 anos de idade, representou o personagem chamado Príncipe Escamado em alguns episódios do Sítio do Picapau Amarelo, na série que era transmitida pela TV Tupi, o primeiro canal de televisão a entrar em funcionamento comercial no Brasil, em 1950. Surpreso e interessado, combinei de entrevistar com mais tempo a jovem atriz para saber os detalhes daquela bela história, e aqui estão os resultados dessa conversa, junto a algumas das preciosas imagens que Marion Joseph guarda com carinho.

Acompanhe, a seguir, a íntegra de nossa conversa realizada em agosto de 2020.

Marion: Meu nome completo é Marion Beatriz Joseph, eu nasci em São Paulo, capital. Que horas? Sete… três minutos para as sete da manhã. Que mais?

Silvio Tamaso D’Onofrio: De que dia?

Marion: Dia 9 de janeiro de 1945.

Eu queria que você começasse me contando um pouco dessa experiência aqui das fotos… Como é que surgiu, como é que você apareceu nessa encenação? Conta um pouco dessa história.

Marion: Meu pai é… começo com o meu pai. Meu pai conhecia muita gente…

Como era o nome dele?

Marion: Henrique Joseph. Hejo: Agá, ê, jota, ô. Todo mundo conhecia ele como Hejo. E pelo fato de ele ser um fotógrafo da elite paulistana e também fazer algumas coisas de propaganda, ele ficou conhecido por muita gente. Só que ele gostava muito de pintar. Então ele foi fazer aperfeiçoamentos de xilogravura no museu [MASP – Museu de Arte de São Paulo], que naquela época ficava num prédio na rua 7 de Abril, comandado pelo Assis Chateaubriand e Assis Chateaubriand era um aficionado de artes. E meu pai foi convidado, pelo Assis Chateaubriand e por toda uma turma que eu não conheci, de artistas da época – Dionísio de Azevedo, Lima Duarte annhhh… um rapazola na época, Cassiano Gabus Mendes, que queria fazer alguma coisa diferente… e o Assis Chateaubriand estava interessadíssimo em fazer televisão, que o Brasil ainda não tinha. Aí surgiu a ideia, se reuniu a turma de atores, meu pai, o Cassiano, e eles resolveram fazer um filme chamado “A Gata” – esse filme eu quero entregar para o Lima Duarte porque ele não tem o filme. O único filme de rolo que existe é o meu, que era do meu pai e está comigo. E este filme foi que deu a direção de TV, da TV Tupi, para o Cassiano Gabus Mendes, por que o meu pai não quis assumir uma direção de televisão. Aí o Cassiano assumiu e a gente ficou em contato ainda. E havia muita coisa interessante na época para crianças, e um dia minha irmã resolveu ver um cantor na época que se chamava Antonio Prieto, conhecê-lo pessoalmente, ele tinha audições lá no mesmo dia em que tinha as aparições do Sítio do Picapau, que eu já adorava e não perdia um, e numa dessas, para esse tal de cantor, nós conversamos, meus pais né? Minha mãe, meu pai, conversaram com o Júlio Gouveia, e eu fiquei assistindo.

Isso era, então, começo dos anos 1950.

Marion: Exatamente. E eu fiquei assistindo e fiquei muito vidrada em tudo, não é? Saí… “eu quero fazer isso aí também” [imitando voz infantil]. E aí nós conversamos com o Júlio Gouveia e com a Tatiana Belinky e eles convidaram a gente para… eu decorar um texto, e eles estavam entrando na fase das Águas Claras [episódio do Sítio], porque eram sempre acho que uns capítulos de 15 minutos, se não me engano na terça-feira, que eles fazem… 15 a 20 minutos, que eles faziam do Sítio do Picapau Amarelo. E aí eu fui convidada. Me deram o texto, eu decorei direitinho. Eu estava acho que no primeiro ou no segundo ano da escola, então para mim era difícil ler; quem decorava comigo era a minha mãe, eu lembro direitinho. Eles tinham uma casinha lindinha que parecia dessas casinhas… com alpendre, com aquelas figurinhas de retalhos de madeira feito renda, eu me lembro direitinho da casa. E a gente ia lá ensaiar.



Você e outras crianças, então?

Marion: Não… era! A turma já era formada, né? Tinha o Hernê Lebon [fazia o Visconde de Sabugosa], a Luciana Belini, tinha o Pedrinho que eu também não lembro o nome…. tinha a Vilma Camargo… a vovó Anastácia, lógico não é? Só que ela não aparecia junto comigo porque eu estava dentro da água, eu era o Príncipe Escamado. Então eu ficava dentro da água. E meu pai, quando viu que iria ser algo de água, ele deu uma ideia de colocarem um aquário na frente da câmera para parecer que estava embaixo da água. E assim surgiu a imagem de peixinhos nadando no Reino Encantado das Águas Claras. E aí eu fiz acho que uns seis ou oito capítulos, e essa foi a minha história, não?, no Sítio do Picapau Amarelo. Era na época patrocinado pelas bolachinhas que se chamavam Duchen e tem uma musiquinha: “Espere petizada o trenzinho camarada que é biscoitos… Duchen!” [canta]. “É o trenzinho camarada onde não se paga nada, onde a gente passa bem, comendo biscoitos Duchen” [sorri]. É isso aí. E a música do Sítio eu já não me lembro mais qual que era, mas devia ser uma música bem divertida, bem infantil, muito gostosa.

O Sítio passava na TV na parte da manhã?

Marion: Não, passava à noite, sete e quinze, sete e meia, uma coisa assim… um episódio por semana. Terça-feira era o Sítio do Picapau Amarelo, na quinta-feira se chamava Fábulas Animadas. Aí tinha ehh… Le Fontaine, todos… o Esopo, todas as coisas que você pode imaginar… A raposa e as uvas ehhh… histórias brasileiras também, um monte de coisas…



Isso era responsabilidade do Júlio e da Tatiana também?

Marion: [balança a cabeça afirmativamente] Do Júlio e da Tatiana também. E no domingo de manhã era o programa Teatro da Juventude, aí eles faziam muita coisa de historinhas inteiras. Então era… A menininha do fósforo, Hans Christian Andersen, um monte de coisas, eles faziam quase que a história inteirinha, não é? Eles tinham tempo, era uma hora, uma hora e meia de teatro, aí eles faziam a história inteira. Eu me lembro que era tomar café da manhã e ir assistir ao Teatro da Juventude.

E como acabou a sua participação no Sítio?

Marion: Saí porque o Júlio queria que eu fizesse o filho do Moisés em um feriado religioso. E meus pais queriam me levar para a Sinagoga na época que eu saí do programa. Eu fiquei acho que uns três, quatro meses trabalhando com eles, depois sempre tive contato com a Tatiana, eu visitava ela…

E como surgiram essas fotos de você na TV?

Marion: Pois é… meu pai tirou fotos da televisão no exato momento em que eu aparecia representando no Sítio, para guardar de recordação. Hoje sei que essas fotos são raríssimas, não é mesmo? Pouca gente teve esse tipo de registro, também porque pouca gente manuseava máquina fotográfica na época. E a TV da época era feita ao vivo, não tinha gravação, então o que foi transmitido “foi para o espaço”, como se dizem [ri]. Aí ficaram essas fotos para a nossa satisfação.

Quando você saiu de São Paulo?

Marion: Eu saí em 1997.

Nesse período, dos anos 50, desses episódios, dessa conversa, desse pessoal que você conheceu – se bem que, claro, você era uma criança ainda –, você manteve contato com alguém? Nos anos 60, vocês se falavam? Alguma carta, por exemplo?

Marion: Perdi contato com todo mundo. Só [tinha contato] com a Tatiana de vez em quando… ela fazia anos, se não me engano, no dia 18 de março e meu pai no dia 19, então todo ano eu ligava para ela. Isso eu lembro. E depois que ela faleceu, eu ainda mantive contato com o Ricardo, um dos filhos deles, do Júlio e dela. As últimas vezes que eu visitei a Tatiana, ela já estava bastante debilitada. Foi depois que o Júlio morreu; ela escrevia ainda algumas coisas, mas não era mais aquele entusiasmo, sabe? Nossa! Eu me lembro da primeira vez que eu fui, acho que foi uns dez anos depois que eu fiz isso aí [apontando para as fotos]… Minha mãe foi junto, nós fizemos uma festa, ah! Foi muito gostoso.

Aquela casa no bairro do Pacaembu, na capital de São Paulo, eu conheci. Eu entrevistei a Tatiana uma vez… na Rua Itajaçu.

Marion: Não, ela primeiro morou na Rua Pará, e eu ia na Rua Pará. Aí, muito tempo depois, eles mudaram para a outra casa. Eu fui lá também. Acho que nessa segunda casa eu fui umas duas ou três vezes só. Eu já estava morando em Pinhal; eu moro aqui há 23 anos. Faz tempo.

Quando se fala atualmente em Monteiro Lobato, sempre surge a questão do racismo. Eu queria tentar extrair de você alguma impressão daquele momento de sua participação no programa na televisão dos anos 50. Você se lembra de alguém, de algum comentário, crítica ou reclamação sobre os temas racismo, machismo, entre colegas, na escola ou na imprensa, por exemplo?

Marion: Nenhum. Absolutamente zero. Inclusive nós tínhamos uma conselheira dentro de casa. A Zenaide. Zenaide era uma figura fantástica. Ela teve um filho…

Era negra?

Marion: Era negra. Depois de nossa casa ela foi trabalhar na casa de… ehhh… quase vizinhos. Nós morávamos na Rua Augusta e era ali [gesticula] o pessoal onde ela foi trabalhar e que ficaram com o filho dela, enfim, para cuidar dele, para criar ele, praticamente criaram ele. Era uma família italiana que praticamente adotou o Éder. Eu e a Zenaide éramos uma coisa só. Agora, para fazer suspiro, minha irmã era a primeira! Sobrou clara, a Zenaide fazia suspiro na mesma hora para a minha irmã. Quer dizer, ela era apaixonada pela nossa casa, a casa inteira, cuidava de todos nós como se fosse a mãe de todos, do meu pai, da minha mãe, e de nós duas.

Você se lembra se no estúdio havia atores mirins… crianças negras participando das encenações?

Marion: Que eu me lembre, não, não tinha. O menino que me substituiu como filho do Moisés foi o David José. Você deve conseguir de alguma maneira saber dele também.

Você se lembra se na sua sala de aula, nessa época, tinha negros?

Marion: Não tinha nenhum. Eu estudei em um colégio de elite, o Dante Alighieri, e a vila onde nós morávamos tinha oito casas, a maioria eram estrangeiros, então baixíssima possibilidade de haver negros naquela época. O único que a gente conheceu mesmo foi o Éder, o filho da Zenaide.

Vocês liam Monteiro Lobato na escola?

Marion: Na escola, não! Mas eu li, acho que, todos os livros de Monteiro Lobato; meus pais compravam. Mas era praticamente obrigatório para a gente ler Monteiro Lobato quando éramos crianças. E quando os meus primos menores entraram na escola, nós fomos dando os livros todos para eles, então eu não tenho o original que eu tinha. Aí eu comprei uma coleção, pelo menos: As reinações de Narizinho. Porque eu estou lá, não é? E é muito gostoso.

Imaginando que pudéssemos chamar todas as pessoas da época de Lobato de racistas, uma vez que tinham costumes bem diferentes dos nossos atuais, assim como poderíamos considerá-las machistas, afinal, por exemplo, a mulher no Brasil só conquistou o direito ao voto em 1930, antes disso não votava, então podemos, em um exercício, chamar as pessoas dessa época também de machistas… Pensando assim, você acha que Lobato era mais ou menos racista que as pessoas de sua época? E, se pensarmos bem, a humanidade é racista ainda hoje, não é mesmo?

Marion: Ele não era racista. Eu tenho a impressão de que Lobato não era racista. Porque ele viveu com gente negra, ele conviveu com gente negra. Na fazenda dele, no interior do estado, ainda mais! Todo mundo era negro! Não tinha esse pensamento nele, de jeito nenhum. Tanto que a Tia Nastácia era uma figura… mãe de todos eles no Sítio. Como é que eles poderiam ter qualquer tipo de sentimento ruim com uma figura maternal para eles?

(As imagens de Henrique Joseph integram o Acervo Marion Beatriz Joseph. Agradeço à Marion pelo depoimento e pela cessão das imagens – Silvio)



Seria Lobato realmente racista? - Prof. Dra. Vanete Santana Dezmann

  Por favor, analise as informações abaixo e responda por conta própria.   1. Lobato foi o primeiro escritor brasileiro a denunciar a ...