Participando de uma semana de eventos culturais em Espírito Santo do Pinhal, no interior do estado de São Paulo, uma noite fui surpreendido, à porta do teatro, por uma simpática e sorridente senhora que me perguntou: “Você gosta do Sítio do Picapau Amarelo?”. “Claro, gosto muito!”, respondi-lhe. E ela: “Pois saiba que eu tenho algumas fotos da primeira encenação do Sítio na TV, dos anos 50, porque eu participei da encenação, fui uma das atrizes mirins. Você gostaria de ver essas fotos?”. Incrédulo, respondi: “Claro! Por favor, traga sim as fotos amanhã que eu gostaria muito de vê-las!”. E assim foi feito. No dia seguinte, lá estava a gentil Marion com uns dois ou três retângulos de papel couché de aproximadamente 40×20 cm cada um, contendo algumas fotos em preto e branco reproduzidas neles.
Em uma ou outra das fotografias, o retrato de um pequeno garotinho em vestes elegantes, com um paletó de tonalidade cinza escuro, camisa social, uma grande cartola e uma luxuosa bengala. Era ela, que, com cerca de 7 ou 8 anos de idade, representou o personagem chamado Príncipe Escamado em alguns episódios do Sítio do Picapau Amarelo, na série que era transmitida pela TV Tupi, o primeiro canal de televisão a entrar em funcionamento comercial no Brasil, em 1950. Surpreso e interessado, combinei de entrevistar com mais tempo a jovem atriz para saber os detalhes daquela bela história, e aqui estão os resultados dessa conversa, junto a algumas das preciosas imagens que Marion Joseph guarda com carinho.
Acompanhe, a seguir, a íntegra de nossa conversa realizada em agosto de 2020.
Marion: Meu nome completo é Marion Beatriz Joseph, eu nasci em São Paulo, capital. Que horas? Sete… três minutos para as sete da manhã. Que mais?
Silvio Tamaso D’Onofrio: De que dia?
Marion: Dia 9 de janeiro de 1945.
Eu queria que você começasse me contando um pouco dessa experiência aqui das fotos… Como é que surgiu, como é que você apareceu nessa encenação? Conta um pouco dessa história.
Marion: Meu pai é… começo com o meu pai. Meu pai conhecia muita gente…
Como era o nome dele?
Marion: Henrique Joseph. Hejo: Agá, ê, jota, ô. Todo mundo conhecia ele como Hejo. E pelo fato de ele ser um fotógrafo da elite paulistana e também fazer algumas coisas de propaganda, ele ficou conhecido por muita gente. Só que ele gostava muito de pintar. Então ele foi fazer aperfeiçoamentos de xilogravura no museu [MASP – Museu de Arte de São Paulo], que naquela época ficava num prédio na rua 7 de Abril, comandado pelo Assis Chateaubriand e Assis Chateaubriand era um aficionado de artes. E meu pai foi convidado, pelo Assis Chateaubriand e por toda uma turma que eu não conheci, de artistas da época – Dionísio de Azevedo, Lima Duarte annhhh… um rapazola na época, Cassiano Gabus Mendes, que queria fazer alguma coisa diferente… e o Assis Chateaubriand estava interessadíssimo em fazer televisão, que o Brasil ainda não tinha. Aí surgiu a ideia, se reuniu a turma de atores, meu pai, o Cassiano, e eles resolveram fazer um filme chamado “A Gata” – esse filme eu quero entregar para o Lima Duarte porque ele não tem o filme. O único filme de rolo que existe é o meu, que era do meu pai e está comigo. E este filme foi que deu a direção de TV, da TV Tupi, para o Cassiano Gabus Mendes, por que o meu pai não quis assumir uma direção de televisão. Aí o Cassiano assumiu e a gente ficou em contato ainda. E havia muita coisa interessante na época para crianças, e um dia minha irmã resolveu ver um cantor na época que se chamava Antonio Prieto, conhecê-lo pessoalmente, ele tinha audições lá no mesmo dia em que tinha as aparições do Sítio do Picapau, que eu já adorava e não perdia um, e numa dessas, para esse tal de cantor, nós conversamos, meus pais né? Minha mãe, meu pai, conversaram com o Júlio Gouveia, e eu fiquei assistindo.
Isso era, então, começo dos anos 1950.
Marion: Exatamente. E eu fiquei assistindo e fiquei muito vidrada em tudo, não é? Saí… “eu quero fazer isso aí também” [imitando voz infantil]. E aí nós conversamos com o Júlio Gouveia e com a Tatiana Belinky e eles convidaram a gente para… eu decorar um texto, e eles estavam entrando na fase das Águas Claras [episódio do Sítio], porque eram sempre acho que uns capítulos de 15 minutos, se não me engano na terça-feira, que eles fazem… 15 a 20 minutos, que eles faziam do Sítio do Picapau Amarelo. E aí eu fui convidada. Me deram o texto, eu decorei direitinho. Eu estava acho que no primeiro ou no segundo ano da escola, então para mim era difícil ler; quem decorava comigo era a minha mãe, eu lembro direitinho. Eles tinham uma casinha lindinha que parecia dessas casinhas… com alpendre, com aquelas figurinhas de retalhos de madeira feito renda, eu me lembro direitinho da casa. E a gente ia lá ensaiar.
Você e outras crianças, então?
Marion: Não… era! A turma já era formada, né? Tinha o Hernê Lebon [fazia o Visconde de Sabugosa], a Luciana Belini, tinha o Pedrinho que eu também não lembro o nome…. tinha a Vilma Camargo… a vovó Anastácia, lógico não é? Só que ela não aparecia junto comigo porque eu estava dentro da água, eu era o Príncipe Escamado. Então eu ficava dentro da água. E meu pai, quando viu que iria ser algo de água, ele deu uma ideia de colocarem um aquário na frente da câmera para parecer que estava embaixo da água. E assim surgiu a imagem de peixinhos nadando no Reino Encantado das Águas Claras. E aí eu fiz acho que uns seis ou oito capítulos, e essa foi a minha história, não?, no Sítio do Picapau Amarelo. Era na época patrocinado pelas bolachinhas que se chamavam Duchen e tem uma musiquinha: “Espere petizada o trenzinho camarada que é biscoitos… Duchen!” [canta]. “É o trenzinho camarada onde não se paga nada, onde a gente passa bem, comendo biscoitos Duchen” [sorri]. É isso aí. E a música do Sítio eu já não me lembro mais qual que era, mas devia ser uma música bem divertida, bem infantil, muito gostosa.
O Sítio passava na TV na parte da manhã?
Marion: Não, passava à noite, sete e quinze, sete e meia, uma coisa assim… um episódio por semana. Terça-feira era o Sítio do Picapau Amarelo, na quinta-feira se chamava Fábulas Animadas. Aí tinha ehh… Le Fontaine, todos… o Esopo, todas as coisas que você pode imaginar… A raposa e as uvas ehhh… histórias brasileiras também, um monte de coisas…
Isso era responsabilidade do Júlio e da Tatiana também?
Marion: [balança a cabeça afirmativamente] Do Júlio e da Tatiana também. E no domingo de manhã era o programa Teatro da Juventude, aí eles faziam muita coisa de historinhas inteiras. Então era… A menininha do fósforo, Hans Christian Andersen, um monte de coisas, eles faziam quase que a história inteirinha, não é? Eles tinham tempo, era uma hora, uma hora e meia de teatro, aí eles faziam a história inteira. Eu me lembro que era tomar café da manhã e ir assistir ao Teatro da Juventude.
E como acabou a sua participação no Sítio?
Marion: Saí porque o Júlio queria que eu fizesse o filho do Moisés em um feriado religioso. E meus pais queriam me levar para a Sinagoga na época que eu saí do programa. Eu fiquei acho que uns três, quatro meses trabalhando com eles, depois sempre tive contato com a Tatiana, eu visitava ela…
E como surgiram essas fotos de você na TV?
Marion: Pois é… meu pai tirou fotos da televisão no exato momento em que eu aparecia representando no Sítio, para guardar de recordação. Hoje sei que essas fotos são raríssimas, não é mesmo? Pouca gente teve esse tipo de registro, também porque pouca gente manuseava máquina fotográfica na época. E a TV da época era feita ao vivo, não tinha gravação, então o que foi transmitido “foi para o espaço”, como se dizem [ri]. Aí ficaram essas fotos para a nossa satisfação.
Quando você saiu de São Paulo?
Marion: Eu saí em 1997.
Nesse período, dos anos 50, desses episódios, dessa conversa, desse pessoal que você conheceu – se bem que, claro, você era uma criança ainda –, você manteve contato com alguém? Nos anos 60, vocês se falavam? Alguma carta, por exemplo?
Marion: Perdi contato com todo mundo. Só [tinha contato] com a Tatiana de vez em quando… ela fazia anos, se não me engano, no dia 18 de março e meu pai no dia 19, então todo ano eu ligava para ela. Isso eu lembro. E depois que ela faleceu, eu ainda mantive contato com o Ricardo, um dos filhos deles, do Júlio e dela. As últimas vezes que eu visitei a Tatiana, ela já estava bastante debilitada. Foi depois que o Júlio morreu; ela escrevia ainda algumas coisas, mas não era mais aquele entusiasmo, sabe? Nossa! Eu me lembro da primeira vez que eu fui, acho que foi uns dez anos depois que eu fiz isso aí [apontando para as fotos]… Minha mãe foi junto, nós fizemos uma festa, ah! Foi muito gostoso.
Aquela casa no bairro do Pacaembu, na capital de São Paulo, eu conheci. Eu entrevistei a Tatiana uma vez… na Rua Itajaçu.
Marion: Não, ela primeiro morou na Rua Pará, e eu ia na Rua Pará. Aí, muito tempo depois, eles mudaram para a outra casa. Eu fui lá também. Acho que nessa segunda casa eu fui umas duas ou três vezes só. Eu já estava morando em Pinhal; eu moro aqui há 23 anos. Faz tempo.
Quando se fala atualmente em Monteiro Lobato, sempre surge a questão do racismo. Eu queria tentar extrair de você alguma impressão daquele momento de sua participação no programa na televisão dos anos 50. Você se lembra de alguém, de algum comentário, crítica ou reclamação sobre os temas racismo, machismo, entre colegas, na escola ou na imprensa, por exemplo?
Marion: Nenhum. Absolutamente zero. Inclusive nós tínhamos uma conselheira dentro de casa. A Zenaide. Zenaide era uma figura fantástica. Ela teve um filho…
Era negra?
Marion: Era negra. Depois de nossa casa ela foi trabalhar na casa de… ehhh… quase vizinhos. Nós morávamos na Rua Augusta e era ali [gesticula] o pessoal onde ela foi trabalhar e que ficaram com o filho dela, enfim, para cuidar dele, para criar ele, praticamente criaram ele. Era uma família italiana que praticamente adotou o Éder. Eu e a Zenaide éramos uma coisa só. Agora, para fazer suspiro, minha irmã era a primeira! Sobrou clara, a Zenaide fazia suspiro na mesma hora para a minha irmã. Quer dizer, ela era apaixonada pela nossa casa, a casa inteira, cuidava de todos nós como se fosse a mãe de todos, do meu pai, da minha mãe, e de nós duas.
Você se lembra se no estúdio havia atores mirins… crianças negras participando das encenações?
Marion: Que eu me lembre, não, não tinha. O menino que me substituiu como filho do Moisés foi o David José. Você deve conseguir de alguma maneira saber dele também.
Você se lembra se na sua sala de aula, nessa época, tinha negros?
Marion: Não tinha nenhum. Eu estudei em um colégio de elite, o Dante Alighieri, e a vila onde nós morávamos tinha oito casas, a maioria eram estrangeiros, então baixíssima possibilidade de haver negros naquela época. O único que a gente conheceu mesmo foi o Éder, o filho da Zenaide.
Vocês liam Monteiro Lobato na escola?
Marion: Na escola, não! Mas eu li, acho que, todos os livros de Monteiro Lobato; meus pais compravam. Mas era praticamente obrigatório para a gente ler Monteiro Lobato quando éramos crianças. E quando os meus primos menores entraram na escola, nós fomos dando os livros todos para eles, então eu não tenho o original que eu tinha. Aí eu comprei uma coleção, pelo menos: As reinações de Narizinho. Porque eu estou lá, não é? E é muito gostoso.
Imaginando que pudéssemos chamar todas as pessoas da época de Lobato de racistas, uma vez que tinham costumes bem diferentes dos nossos atuais, assim como poderíamos considerá-las machistas, afinal, por exemplo, a mulher no Brasil só conquistou o direito ao voto em 1930, antes disso não votava, então podemos, em um exercício, chamar as pessoas dessa época também de machistas… Pensando assim, você acha que Lobato era mais ou menos racista que as pessoas de sua época? E, se pensarmos bem, a humanidade é racista ainda hoje, não é mesmo?
Marion: Ele não era racista. Eu tenho a impressão de que Lobato não era racista. Porque ele viveu com gente negra, ele conviveu com gente negra. Na fazenda dele, no interior do estado, ainda mais! Todo mundo era negro! Não tinha esse pensamento nele, de jeito nenhum. Tanto que a Tia Nastácia era uma figura… mãe de todos eles no Sítio. Como é que eles poderiam ter qualquer tipo de sentimento ruim com uma figura maternal para eles?
(As imagens de Henrique Joseph integram o Acervo Marion Beatriz Joseph. Agradeço à Marion pelo depoimento e pela cessão das imagens – Silvio)
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