domingo, 10 de setembro de 2023

Referências à etnia negra em O choque das raças ou o presidente negro – um romance do ano 2228, por Vanete Santana-Dezmann



O livro O choque das raças ou o presidente negro – um romance do ano 2228, de Monteiro Lobato, recentemente passou a ser apontado como um romance racista. Para que cada um possa avaliar por si mesmo as referências a pessoas da etnia negra e a Jim Roy que lá se encontram, reproduzo-as abaixo.
A quem quiser conhecer minha análise deste que foi o único romance de Lobato, indico Entre metafísica, distopia e mecenato, publicado em 2021, o qual inclui a primeira edição do romance.
Parte da análise pode ser encontrada em algumas palestras disponíveis na internet: “Por que O presidente negro não foi publicado nos Estados Unidos”; “Quem fala por Lobato em O presidente negro?” e “Entre metafísica, distopia e mecenato”. Para entender algo, nada melhor do que conhecer. Conhecimento é poder! O conhecimento liberta!

Excertos 1 a 3: descrição de Jim Roy
Era Jim Roy, na realidade, um homem de imenso valor. Nascera fadado a altos destinos, com a marca dos condutores de povos impressa em todas as facetas da sua individualidade.
Como organizador e meneur, talvez superasse os mais famosos organizadores surgidos entre os brancos. A história da humanidade poucos exemplos apresentava de uma eficiência igual à sua. Consagrara-se desde muito jovem à execução dum plano de gênio, traçado nas linhas mestras com a mais perfeita compreensão do material humano sobre que pretendia agir.
Lobato, 2021, p. 259.

Ia realizar um ideal. O problema negro da América teria com ele no governo a única solução justa.
Lobato, 2021, p. 316.

E Jim sonhava o maior sonho que ainda se sonhou na América.
Lobato, 2021, p. 316.

Excerto 4
Às 9 e 45, aproximou-se da janela e espalhou o olhar pelo casario de Washington. O panorama que viu, entretanto, foi bem diverso. Descortinou todo o lúgubre passado da raça infeliz. Viu, muito longe, esfumado pela bruma dos séculos, o humilde kraal africano visado pelo feroz negreiro branco, que em frágeis brigues vinha por cima das ondas, qual espuma venenosa do oceano. Viu o assalto, a chacina dos moradores nus, o sangue a correr, o incêndio a engolir as palhoças. Depois, o saque, o apresamento dos homens e mulheres válidos, a algema que lhes garroteava os pulsos, a canga que os metia dois a dois em comboios sinistros, tocados a relho para a costa. Viu, como goelas escuras, abrirem-se os porões dos brigues para tragar a dolorosa carne de eito. E recordou o interminável suplício da travessia… Carga humana, coisa, fardos de couro negro com carne vermelha por dentro. A fome, a sede, a doença, a escuridão. Por sobre as cabeças da carga humana, um tabuado. Por cima do tabuado, rumores de vozes. Eram os brancos. Branco queria dizer uma coisa só: crueldade fria…
Viu depois o desembarque. Terra, árvores, sol – não mais como em África. Nada deles, agora – nem a terra, nem as árvores, nem o sol. Caminha, caminha! Se um tropeça, canta-lhe o látego no lombo. Se cai desfalecido, trucidam-no. A caravana marcha, trôpega, e penetra nos algodoais…
Viu Jim viçarem luxuriosos os algodoais da Virgínia depois que o negro chegou. Além das chuvas, havia a regá-los, agora, o suor africano – suor e sangue.
Viu dois séculos de chicote a lacerar carnes e ouviu dois séculos de lágrimas, gemidos e lamentosos uivos de dor. E viu a América ir saindo dessa dor, como a pérola, filha do sofrimento do molusco, nasce na concha…
Viu, depois, a Aurora da noite de duzentos anos: Lincoln. O branco bom disse: Basta! Ergueu exércitos e das unhas de Jefferson Davis arrancou a pobre carne-coisa.
As algemas caíram dos pulsos, mas o estigma ficou. Às algemas de ferro se substituíram as algemas morais do pária. O sócio branco negava ao sócio negro a participação de lucros morais na obra comum. Negava a igualdade e negava a fraternidade, embora a Lei, que paira serena acima do sangue, consagrasse a equiparação dos dois sócios.
E viu Jim que Justiça não passava de uma pura aspiração – e que só há justiça na terra quando a força a impõe.
Jim: “Hei de fazer-me força e impor a justiça”, murmurou o grande negro.
Em sua testa larga, profunda ruga se abriu. Seus olhos se cerraram e Jim permaneceu imóvel, como siderado por uma ideia de gigante.
Lobato, 2021, p. 279-280.

Excerto 5
Lentamente despertava a massa negra do longo letargo de submissão, e tremia, de narinas ao vento, como o tigre solto na jungle. Toda a barbárie atávica, todos os apetites em recalque, rancores impotentes, injustiças padecidas, todas as vergastadas que laceraram a sua pobre carne até o advento de Lincoln e, depois de Lincoln, todas as humilhações da desigualdade de tratamento – essa legião de fantasmas irrompeu da alma negra como serpes de sob a laje que mão imprudente levanta. E a raça maior, que através dos séculos não se atrevera a sonho maior que o da mesquinha liberdade física, passou a sonhar o grande sonho branco da dominação… (…) Amava Jim a América. Nos alicerces do colossal edifício, o cimento ligador dos blocos fora amassado com o suor dos seus ancestrais. A América surgira do esforço braçal de um dirigido pelo esforço mental de outro, e, pois, tanto lhe falava ao sangue como ao do mais orgulhoso neto dos pioneiros louros.
Lobato, 2021, p. 288-289.

Excerto 6
Jim sentia no ar as ondas de fluidos explosivos, um perfeito ambiente de pólvora. O solo latejava pulsações vulcânicas.
Tremeu o negro diante da sua obra – e, sem vacilar, foi ao encontro do Kerlog. O momento impunha a conjugação da sua força com a do líder branco.
Defrontaram-se os dois chefes como duas forças da natureza, contrárias nos seus destinos, inimigas pela voz do sangue, mas irmanadas no momento por um nobre objetivo comum.
Lobato, 2021, p. 289.

Excerto 7
No primeiro ímpeto, Kerlog apostrofou o chefe negro.
Kerlog: “Vê tua obra, Jim! A América transformada num vulcão e ameaçada de morte!”
O negro cravou no líder branco os olhos frios, por um instante animados de estranho fulgor.
Jim: “Não minha, presidente Kerlog! Não é minha esta obra. É sua, é dos seus, é de Washington, é de Lincoln. Vós, brancos mentistes na lei básica. E ou confessais que mentistes ou reconheceis que a situação é perfeitamente normal. Que aconteceu, presidente Kerlog? Houve um pleito e as urnas libérrimas conferiram a vitória a um cidadão elegível. Acha o presidente Kerlog que o pacto Constitucional sofreu lesão?
Naquele peito a peito, Jim Roy dominava o adversário.
Lobato, 2021, p. 289.

Excerto 8
Jim: “Mas não se trata disso”, continuou ele. “O momento não é para recriminações – e nesta matéria o presidente Kerlog bem sabe que jamais um branco venceria um negro… O fato está consumado e, como chefes supremos das duas raças, a nós só incumbe atender à salvação comum. Se não contivermos de rédeas presas – eu, o monstro da ebriedade negra, o presidente Kerlog, o monstro do orgulho branco, a chacina vai ser espantosa…”
Kerlog: “Ninguém sabe disso melhor que eu”, retrucou o chefe da nação. “Nos estados do Sul já lavra o incêndio…”
Lobato, 2021, p. 289.

Excerto 9
O negro deu um salto.
Jim: “Jim o apagará! Jim manterá em cadeia de aço a pantera africana. Ele a domina com os olhos, como o soba a dominava no kraal donde a rapina dos brancos a tirou. Jim é rei!”
Era tal a firmeza com que emitia o grande negro aquelas palavras que o tom de superioridade do líder branco se demudou em admiração.
Viu Kerlog que tinha diante de si não um feliz aventureiro político, mas uma dessas incoercíveis expressões raciais a que chamamos condutores de povos. Pela primeira vez, enfrentava um homem que era algo mais que um homem. E, do fundo do coração, lamentou Kerlog que a incompatibilidade racial o separasse de tamanho vulto.
Lobato, 2021, p. 289.

Excerto 10
Jim prosseguiu:
Jim: “Mas só o farei se o Presidente Kerlog, do seu lado, açaimar o orgulho branco. Eu domino com o olhar e a palavra terrível. O Presidente Kerlog domina com a força do estado. Em nossas mãos está, pois, a paz da América.”
O líder branco baixou a cabeça. Meditava.
Kerlog: “Pois salvemos a América, Jim!”, disse erguendo-se. “Açaima tu a pantera negra que meterei luvas de ferro nas unhas da águia loura.”
Um leal aperto de mão selou aquele pacto de gigantes.
Lobato, 2021, p. 290.

Excerto 11
Kerlog: “Mas a pantera que conte com o revide da águia!”, concluiu o líder branco depois que as mãos se desapertaram. “A águia é cruel…”
Jim Roy retesou-se de todos os músculos, como a fera que se põe em guarda.
Jim: “Ameaça-nos como sempre? Ameaça-nos até no momento em que a América ou rasga a sua Carta e afoga-se num mar de sangue ou submete-se à minha direção?”
Lobato, 2021, p. 290.

Excerto 12
Kerlog olhou-lhe firme nos olhos e murmurou com nitidez de lâmina:
Kerlog: “Não ameaço. Previno lealmente. Vejo em ti uma força demasiado grande para que eu a enfrente com palavras. Estamos, face a face, não dois homens, sim duas almas raciais arrostadas num duelo decisivo. Não fala neste momento o presidente Kerlog. Fala o branco de crueldade fria, o mesmo que vos arrancou do kraal, o mesmo que vos torturou nos brigues, o mesmo que vos espezinhou nos algodoais. Como há razões de estado, Jim, há razões de raça. Razões sobre-humanas, frias como o gelo, cruéis como o tigre, duras como o diamante, implacáveis como o fogo. O Sangue não raciocina, como os filósofos. O Sangue sidera, qual o raio. Como homem, admiro-te, Jim. Vejo em ti o irmão e sinto o gênio. Mas, como branco, só vejo em ti o inimigo a esmagar…”
Lobato, 2021, p. 290.

Excerto 13
O largo peito de Jim Roy arfava. A fera ancestral contida nele transpareceu no fremir das ventas grossas.
Jim: “E não trepidará o branco em esmagar a América se for condição para esmagar o negro?”, rugiu.
Kerlog retrucou calmamente, como se pela sua boca falasse o próprio deus do Orgulho:
Kerlog: “Acima da América está o Sangue.”
Lobato, 2021, p. 290.

Excerto 14
Jim abaixou a cabeça. Viu aberto à sua frente o eterno abismo. O dolicocéfalo louro tinha a dureza do diamante. Armado de mais cérebro, dos vales dos Ganges partira para a atrevida aventura conquistadora e vencera sempre, e não cedera nunca. Era o nobre, o duro, o eterno senhor cujo raio fulmina. Era o criador. Do rude instinto de matar do troglodita, extraíra a sua grande arte, a Guerra. Forjara a espada, dominara o gás que explode, violara o profundo das águas e a amplidão dos ares. E, com esse feixe de armas incoercíveis, rodeara, como de baionetas, o diamante do seu Orgulho.
Lobato, 2021, p. 290.

Excerto 15
Tudo isso, num clarão, viu Jim Roy naquele homem que, sereno, o arrostava. E o que ainda havia de escravo no sangue do grande negro vacilou. Jim sentiu-se retina ferida pelo sol. Mas sem demora reagiu. Ergueu-se e, mais firme que nunca, disse, com durezas de rocha na voz:
Jim: “Seja! E porque assim é, dei o supremo golpe. A América é tão sua como minha. Tenho-a nas mãos. Vou dividi-la.”
Kerlog: “A justiça está contigo, Jim. Manda a justiça dividir a América. Mas o Sangue está acima da justiça. O Sangue tem a sua justiça. E, para a justiça do Sangue Ariano, é um crime dividir a América.
Jim baixou a cabeça novamente e emudeceu. Pela segunda vez, sentia-se retina ofuscada pelo sol.
Lobato, 2021, p. 291.

Excerto 16
O presidente Kerlog aproximou-se dele e, com as mãos nos seus ombros largos, disse:
— “Vejo-te grande como Lincoln, Jim, e é com lágrimas nos olhos que contemplo tua figura imensa, mas inútil… Adeus. Atendamos ao instante, açaimemos as nossas raças, mas não fique entre nós sombra de mentira. O teu ideal é nobilíssimo, mas à solução de justiça com que sonhas só poderemos responder com a eterna resposta do nosso orgulho: Guerra!”
E os dois seres humanos, subsistentes no imo dos dois líderes raciais, abraçaram-se com lágrimas…
Miss Jane fez uma pausa, atenta à minha comoção. Aquele duelo de gigantes agitara fundo o meu ser. Tive a impressão de que jamais a história oferecera lance mais augusto – nem mais cruel. Vi claros inúmeros pontos até ali obscuros na marcha da caravana que do fundo das idades vem vindo a entredegolar-se com sanhudos ódios. Vi um sonho de Ariel esfumado nas alturas, a Justiça Humana, e vi na terra, onipotente, a Justiça do Sangue, um raio cego…
Ayrton: E depois?, perguntei. Reentrou na paz a América?
Jane: Sim, respondeu Miss Jane. Os dois líderes entraram a agir de pronto. A ação de um foi tão rápida e segura como a do outro. A pantera negra recolheu as garras e a águia loura enluvou as unhas.
Mas o beluário negro sentia-se ferido. As palavras que a raça branca pusera na boca de Kerlog cravaram-se-lhe no coração como as zagaias dos seus avós no peito dos fulvos leões africanos – mortalmente…
Lobato, 2021, p. 290

E quem ousará dizer que este livro desmerece, em algum momento, as pessoas negras?!

 

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